Transformar energia em deslocamentos verdes
Práticas como andar a pé e de bicicleta ganham novos adeptos com a pandemia e propõem formas mais sustentáveis de ir e vir
Quando um deslocamento depende da energia do indivíduo com a ajuda de equipamentos não motorizados ou mesmo sem ela, estamos falando de mobilidade ativa. Caminhada, andar de bicicleta e outras são modalidades que foram fortemente impulsionadas na pandemia. De acordo com pesquisa feita pela organização Rede Brasileira de Urbanismo Colaborativo, a preferência por andar a pé passou de 9%, antes da covid-19, para 23%, em 2020, em todo o País.
Da mesma forma, as cidades vivenciam aumento no número de ciclistas, o que se comprova na elevação das vendas de bikes, no número de compartilhamentos pelas empresas de aplicativos ou mesmo nos marcadores da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), no caso da capital paulista.
Ao que parece, muitos que adotaram novos hábitos, por necessidade de economizar ou para praticar atividade física ou por preferência, vão seguir caminhando e pedalando. Para conhecer as novidades da modalidade e os muito desafios que envolvem as práticas nos grandes centros, o Mobilidade conversou com Suzana Leite Nogueira, arquiteta urbanista, pedagoga e especialista em planejamento e projetos de mobilidade ativa.
Mobilidade: A modalidade como meio de transporte tem crescido na cidade de São Paulo?
Suzana Leite Nogueira: De acordo com a última Pesquisa Origem Destino do Metrô (OD-2017), o modo de deslocamento a pé representa 31,8% das viagens diárias, na região metropolitana de São Paulo. Comparando com os dados do mesmo estudo feito em 2007, houve um crescimento de 5,8% no número de pessoas que andam como meio de transporte principal.
Já o modo bicicleta ainda não é tão utilizado quanto a caminhada, mas tem apresentado crescimento, na última década. De acordo com a mesma pesquisa OD-2017, houve aumento de 7,2% no total de ciclistas e de 45,2% no número de viagens realizadas por bicicletas, na mesma região, também na comparação com 2007. Outros dados, como os da ONG Ciclocidade, mostram crescimento no número de ciclistas em diferentes pontos da cidade. Por exemplo, no cruzamento entre as avenidas Imperador e Águia de Haia, na zona leste da capital paulista, foram realizadas contagens, em 2016 e em 2020, obtendo o total, respectivamente, de 687 e 1.060 ciclistas diários, elevação de 54%. Podemos observar que o número de mulheres cresceu de 2% para 3% e o de bicicletas cargueiras, de serviço, passou de 2% para 3%, o que demonstra que os usos vêm se diversificando.
Desafios da prática da mobilidade ativa na cidade
Na continuação da entrevista, Suzana Leite Nogueira, arquiteta urbanista, pedagoga e especialista em planejamento e projetos de mobilidade ativa, discorre sobre novos aspectos importantes – por exemplo, qual é o papel do Poder Público na melhoraria da infraestrutura urbana para oferecer condições mais apropriadas para quem optar pela mobilidade ativa. Além da importância da educação em relação a nova formas de mobilidade.
Mobilidade: O que a prática dessas modalidades proporciona às pessoas?
Suzana Leite Nogueira: Trazem benefícios sociais, de saúde e até mesmo economia pessoal. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a caminhada e o uso da bicicleta melhoram as condições físicas, reduzindo riscos de diabetes, ajudam em problemas intestinais, doenças respiratórias crônicas, além de diminuir o estresse, que pode causar acidente vascular cerebral e ataque cardíaco.
Segundo a publicação A Economia da Bicicleta no Brasil, o modal gera uma economia, anual, de R$ 12.800, por família, o que contribui também com a condição de renda. A bicicleta fomenta um ciclo no setor produtivo nacional, com estímulo à produção, à distribuição, à venda e à manutenção.
No Brasil, 297 unidades fabris produzem componentes e montam bicicletas, o que resulta em mais de 7.000 empregos. O comércio atacadista compreende 269 estabelecimentos, com geração de cerca de 3.200 mil postos de trabalho. No varejo, são 5.700 negócios e em torno de 13.800 empregos. No total, 34.000 postos são gerados. É importante destacar que essa cadeia se concentra, prioritariamente, nas regiões Sudeste e Sul do Brasil, e tem um grande potencial de crescimento nas outras regiões. Além disso, caminhar e andar de bicicleta são atividades que não emitem poluentes, o que contribui para a saúde pública das cidade – e é muito relevante se considerarmos que, no Brasil, mais de 20.000 pessoas morrem, por ano, em decorrência da exposição aos materiais particulados do ar.
Que desafios as pessoas enfrentam ao caminhar e andar de bicicleta?
Suzana Nogueira: As dificuldades estão relacionadas ao comportamento dos condutores dos veículos motorizados no trânsito e à falta de infraestrutura para circulação de pedestres e ciclistas. Em relação aos pedestres, é importante mencionar a falta de calçadas, a estrutura precária nas condições de circulação, tanto ao longo do calçamento como nas travessias, a inexistência de pistas de caminhada e de manutenção como principais elementos que restringem o estímulo à prática na cidade.
A maior dificuldade dos ciclistas está ligada aos riscos de circulação no trânsito. De acordo com a Pesquisa Nacional do Perfil do Ciclistas, realizada em quatro cidades brasileiras, dentre elas São Paulo, 40,8% dos entrevistados afirmam que a falta de segurança e de respeito dos condutores dos veículos motorizados é o que mais dificulta o uso do modal.
Ainda, entre os entrevistados, 38% associam a falta de infraestrutura como um fator que os desestimula a pedalar. Dados da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) em São Paulo apresentam, com base em contagens em vias antes e depois da construção de infraestrutura ciclo viária, crescimento na circulação de bikes após a implantação da estrutura segregada. Além disso, quando falamos desse tema, também, devemos considerar a importância dos bicicletários, pois esses equipamentos estimulam o uso desse modal.
É comum que não praticantes desconheçam os direitos de ciclistas de pedalarem nas ruas. Por isso, é fundamental que essa discussão alcance toda a sociedade. O Departamento Nacional de Trânsito (Denatran) definiu que conteúdos sobre mobilidade urbana sejam incorporados ao currículo escolar, o que é uma ótima iniciativa, pois teremos, com esse processo, o tema sendo tratado em salas de aula, fazendo sentido para as pessoas desde a infância. Isso traz um olhar que não foca no espaço viário destinado, quase que exclusivamente, aos carros.
Que ações são necessárias para resolver esses desafios?
Suzana Nogueira: É fundamental que o Poder Público amplie a infraestrutura para pedestres e ciclistas e estabeleça um programa de manutenção permanente, com ampliação da largura de calçadas, construção de pavimentação adequada, criando acessibilidade e novos pontos de travessias no sistema viário, priorizando, também, a circulação dos pedestres nos cruzamentos.
Em relação ao uso da bicicleta, criar conexões entre as ciclovias e ciclofaixas existentes, além de implementar novas intervenções de circulação, como as ciclopassarelas, que qualificam a infraestrutura viária para quem já utiliza o modal, servem de estímulo a novos ciclistas. Os bicicletários também são importantes, e precisam oferecer qualidade como equipamentos de apoio a quem pedala. Em relação ao Poder Público, estabelecer a oferta de bicicletas a novos usuários, em diferentes regiões da cidade – como acontece no sistema de bicicletas compartilhadas disponível na região central –, pode estimular pessoas que não possuem equipamento.
O que você destaca de novidades positivas em mobilidade ativa?
Suzana Nogueira: Existem iniciativas importantes que vêm sendo executadas pelo Poder Público, por organizações sociais e por parcerias com a iniciativa privada. Para a mobilidade a pé, posso mencionar as intervenções urbanas com foco na circulação dos pedestres, que, mesmo não sendo inovadoras, têm apresentado soluções que melhoram as condições de caminhabilidade.
O conceito de “territórios educativos” existente em algumas cidades da região metropolitana de São Paulo, por exemplo, busca tratar o entorno das escolas com equipamentos públicos dos bairros, possibilitando que as pessoas criem mais deslocamentos a pé para diferentes finalidades, como comércio, estudo e serviços. Há, ainda, programas, como o Carona a Pé, que estimula as crianças a conhecerem a região entre a casa e o colégio e possam caminhar em pequenos grupos conduzidos por monitores de uma organização social.
O urbanismo tático também tem sido uma estratégia de redesenho de espaços viários, que possibilita um teste das intervenções para sua redistribuição antes de uma transformação definitiva. De caráter lúdico, tende a chamar a atenção das pessoas que circulam naquele espaço e que podem perceber as mudanças para qualificar as áreas de circulação. Em relação à bicicleta, há iniciativas que vêm ampliando sua importância, como de organizações que ensinam a pedalar, fazem reforma de equipamentos e distribuição para pessoas carentes ou mesmo as formações de empreendedorismo para o universo da bike, com foco na geração de emprego e renda. Entre elas, destaco a Rede Bike Anjo, que treina os interessados para que possam pedalar em seus deslocamentos diários.
Quer uma navegação personalizada?
Cadastre-se aqui
0 Comentários