A guerra silenciosa nas vias brasileiras: quando o inimigo somos nós

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A guerra silenciosa nas vias brasileiras: quando o inimigo somos nós

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Mobilidade para quê?

A guerra silenciosa nas vias brasileiras: quando o inimigo somos nós

Por mais que duelemos contra o tempo ao volante, o único adversário real é nossa própria imprudência

4 minutos, 24 segundos de leitura

08/05/2025

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No Brasil, são mais de 30 mil vidas perdidas por ano nas estradas. Foto: Adobe Stock

Guerras mobilizam nações, dominam manchetes e provocam comoção mundial. Enquanto isso, uma tragédia de proporções equivalentes ou maiores acontece diariamente nas ruas e estradas do mundo: a carnificina silenciosa do trânsito. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), cerca de 1,35 milhão de pessoas morrem anualmente em acidentes de trânsito – número superior às vítimas de muitos conflitos armados contemporâneos combinados. No Brasil, são mais de 30 mil vidas perdidas por ano nas estradas. Por que, então, não declaramos estado de emergência diante desta devastação cotidiana?

A natureza distinta dos conflitos

Nas guerras, há inimigos declarados, estratégias de ataque e defesa, e uma clara intenção de ferir. Já no trânsito, não enfrentamos adversários, mas compartilhamos espaço com outros cidadãos comuns – pessoas que, como nós, estão apenas tentando chegar aos seus destinos. A ironia trágica é que, enquanto na guerra a morte é uma possibilidade calculada, no trânsito ela surge como uma surpresa devastadora, frequentemente resultante de decisões banais e evitáveis.

Quando um motorista decide responder a uma mensagem no celular enquanto dirige a 80 km/h, não há intenção de matar. Mas, por alguns segundos de distração, seu veículo percorre “às cegas” distâncias equivalentes a vários campos de futebol. Ali não há bombas programadas, apenas escolhas impensadas.

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Quem são as vítimas?

Em zonas de guerra, soldados e combatentes assumem riscos conhecidos. No trânsito, as vítimas são pessoas comuns em rotinas diárias – estudantes a caminho da escola, trabalhadores retornando para casa, famílias em passeio de fim de semana. São mortes que ocorrem em plena normalidade da vida civil, sem declarações formais de hostilidade.

Maria, de 19 anos, voltava da faculdade quando um motorista embriagado invadiu a contramão. João esperava no ponto de ônibus, quando um carro desgovernado subiu na calçada. Histórias como essas se repetem diariamente, transformando estatísticas em tragédias familiares irreparáveis.

A responsabilidade individual no volante

Em conflitos armados, a responsabilidade pelas mortes geralmente recai sobre Estados, governos ou grupos armados. Já no trânsito, cada condutor carrega consigo o potencial de vida ou morte. O excesso de velocidade, o uso do celular ao volante, a direção sob efeito de álcool – são escolhas individuais com consequências coletivas devastadoras.

Diferentemente da guerra, onde muitas vezes os cidadãos comuns são impotentes diante das decisões de seus líderes, no trânsito cada um de nós tem o poder – e a obrigação – de evitar a próxima tragédia. Basta uma decisão consciente.

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O alcance invisível da tragédia

Enquanto conflitos armados acontecem em territórios delimitados, a violência no trânsito é onipresente e democrática – afeta países ricos e pobres, cidades grandes e pequenas. Apesar disso, as câmeras de TV raramente se voltam para este massacre cotidiano, a menos que envolva uma celebridade ou cause um congestionamento monumental.

A guerra no trânsito não tem fronteiras, não tem cessar-fogo e, pior, não recebe a devida atenção das autoridades e da sociedade. É uma guerra em que os boletins de baixas são diários, mas não geram manchetes proporcionais ao seu impacto.

O impacto social naturalizado

Quando eclodem confrontos armados, vemos mobilizações globais, campanhas de ajuda humanitária e esforços diplomáticos para restabelecer a paz. Já as mortes no trânsito foram perigosamente normalizadas – tornaram-se parte da paisagem urbana, como se fossem um preço inevitável da mobilidade moderna.

O custo humano, no entanto, é incalculável. Famílias destroçadas, sonhos interrompidos, potenciais desperdiçados. E o mais alarmante: segundo especialistas em segurança viária, até 90% destes acidentes seriam evitáveis com medidas simples de prevenção e mudanças comportamentais.

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Uma mudança de perspectiva urgente

É hora de reconhecermos que estamos diante de uma crise humanitária nas estradas e que a solução começa com cada um de nós. Precisamos repensar nossa relação com o trânsito, compreendendo que cada veículo é um instrumento que pode tanto facilitar nossa vida quanto encurtá-la dramaticamente.

Campanhas educativas precisam ganhar a mesma urgência de alertas de segurança nacional. Leis de trânsito devem ser aplicadas com o mesmo rigor de crimes contra a vida. E, principalmente, cada condutor precisa assumir sua responsabilidade como guardião não apenas da própria vida, mas das vidas que compartilham o mesmo espaço público.

Na guerra, mata-se por ódio ou ideologia. No trânsito, estamos matando por pressa, distração ou irresponsabilidade — e o mais trágico: estamos matando gente como nós, sem saber. A diferença é que esta é uma guerra que podemos encerrar hoje, com uma simples mudança de atitude ao sentar atrás do volante.

Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião do Estadão

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