Como é viver sem carro na cidade de São Paulo

Cansado do trânsito, João Carlos Batista, 64 anos, atravessa a Represa de Guarapiranga de barco e pedala até seu escritório. Foto: Marco Ankosqui

22/09/2021 - Tempo de leitura: 12 minutos, 15 segundos

Eram quase 10h de uma manhã de setembro e a neblina ainda encobria grande parte da Represa de Guarapiranga, na zona sul da capital paulista, quando a pequena embarcação despontou no horizonte. O barco trazia o seu idealizador, o aposentado João Carlos Batista, 64 anos, e uma bicicleta. 

Batista sai todos os dias do Parque do Terceiro Lago, do outro lado da represa, extremo sul de São Paulo, e percorre meia hora no seu barco, batizado de Mini Toot, até chegar às margens da Avenida Atlântica, na região de Interlagos. Em uma marina, o aposentado atraca seu barco, descarrega a bicicleta e pedala mais 10 quilômetros até o seu escritório, onde cuida de quitinetes alugadas, próximo à Ponte João Dias.

O aposentado diz ter chegado a uma idade em que só pretende fazer o que gosta. “Não suportava ficar parado no trânsito para dar a volta na lagoa. Gastando combustível e poluindo o ar”, revela, embora gaste 2 litros de gasolina no motor do seu barco, um gerador adaptado, para ir e voltar para casa. “Seria bom mesmo se não poluísse”, sonha ele. 

Hoje, 22 de setembro, no Dia Mundial sem Carro, João Batista adere ao movimento sem mudar sua rotina.  

Incentivo a transporte alternativo

O Dia Mundial sem Carro, celebrado, anualmente, em 22 de setembro, tem como objetivo incentivar o uso de meios de transportes alternativos. A data foi criada por ativistas franceses, em 1997, mas, em pouco tempo, foi adotada em diversos países. No ano 2000, mais de 750 cidades europeias aderiram ao movimento, que busca conscientizar as pessoas sobre os problemas causados pelo uso irrestrito do automóvel particular, como aumento da poluição, enorme gasto de combustíveis e matérias-primas, além do trânsito pesado. 

No Brasil, 11 cidades fizeram sua primeira versão em 2001, mas só chegou à cidade de São Paulo em 2003, com iniciativas da sociedade civil. Porém, só em 2005, ou seja, há 16 anos, o evento passou a ter apoio da prefeitura paulistana e a atrair a atenção de outras organizações.

Símbolo do uso irracional do carro, a capital paulista tem uma frota de 6,2 milhões de automóveis, segundo dados do Detran-SP. O volume representa 11% da frota nacional desse tipo de veículo. Com uma população estimada em 12.396.372 habitantes, segundo o IBGE, São Paulo tem um carro para cada 1,9 habitante. É demais.

5 histórias de paulistanos que abriram mão do carro

Mesmo podendo comprar um, eles decidiram não se deslocar de automóvel próprio.

A ideia de deixar o carro em casa, nem que seja apenas por um dia no ano, apavora muitos paulistanos. Não faltam habitantes na maior metrópole do Hemisfério Sul e centro financeiro do País que não conseguem imaginar como é viver sem carro em São Paulo. 

Embora insuficiente para suprir a demanda, São Paulo possui uma das maiores malhas ferroviárias do País, com trens e metrô, além de uma grande rede de linhas de ônibus que percorre toda a cidade. Ainda assim, muitos proprietários de automóvel hesitam em trocar o veículo particular pelo transporte coletivo ou por outros meios de locomoção alternativos, como a bicicleta ou até mesmo a caminhada.

É claro que só uma minoria da sociedade enfrenta essa realidade, pois, como se sabe, boa parte da população não tem outra opção que não seja o transporte público, que nem sempre consegue atender a todos com eficiência desejada.

Conversamos com pessoas que, pelos mais variados motivos, optaram ou decidiram levar uma vida sem dirigir. São experiências que podem inspirar outros paulistanos a procurar formas mais sustentáveis de se locomover.

Histórias que podem inspirar os moradores de São Paulo não exatamente a abandonar o carro, mas sim usá-lo de forma mais racional ou até procurar formas mais inteligentes de se locomover pela cidade.

1 – Saio de rolê

Em vez de carro ou moto, João Batista navega e pedala até seu escritório. Foto: Marco Ankosqui

João Batista mora no Parque do Terceiro Lago, há dez anos, com sua segunda esposa, com quem tem dois filhos, já crescidos – é pai também de outros dois, mais velhos, do primeiro casamento. De onde mora, são cerca de 17 quilômetros até a marina, onde atualmente atraca seu barco e começa a pedalar. “Mas, de manhã, o trânsito é muito ruim. De carro, eu nem tentei, mas vinha de moto e, mesmo assim, perdia muito tempo”, diz ele.

Paulista da cidade de Tupã, sempre gostou de pedalar e, inicialmente, fazia esses 27 quilômetros de bicicleta. “Mas a Estrada Jaceguava não tem ciclovia e é muito estreita e perigosa. Ficava com medo de ser atropelado pelos carros. Tem tachões no meio da rua e os carros não conseguem desviar dos ciclistas”, lamenta ele. Foi, então, que decidiu aproveitar a extensa via aquática, oferecida pela represa.

Na primeira tentativa, construiu um caiaque com suporte para a bike, mas era muito cansativo e demorado remar contra o vento e depois pedalar até a sua transportadora, no Jardim das Belezas, perto da Ponte João Dias. “Também tinha muito cliente chato, que me ligava toda hora. Eu precisava parar o caiaque ou a bike para atender o telefone, responder e-mail”. Decidiu, então, construir seu barco.

Comprou um casco de fibra, encontrou um engenheiro em Itapetininga (SP) que transformava geradores em motor de barco e mandou fazer a cabine “para me proteger da chuva e do frio na represa”, conta ele. Nesse meio-tempo, fechou a transportadora, construiu 11 quitinetes no terreno e, agora, administra o local. “Como a construção é nova, não tem muito problema. Mas, ainda assim, sempre que preciso ir lá, uso o barco e a bike. Brinco que não saio para trabalhar. Saio de rolê”, conta. Para o futuro, o plano é levar as pessoas para passearem pela represa, aos finais de semana. 

Carro? “Até tenho um, que uso para viajar ou puxar a minha Honda CRF 230, quando vou fazer trilha lá em Embu-Guaçu. Mas o cabo da bateria fica até desligado para não descarregar”, garante ele.  

2 – Nem fui buscar a carta

Adriana Fiqueiredo costuma resolver tudo a pé no bairro de Pinheiros, onde mora. Foto: arquivo pessoal

Pressionada pelos pais, colegas e por quase todo mundo, Adriana Figueiredo se inscreveu na autoescola para tirar a Carteira Nacional de Habilitação para dirigir carros, quando já tinha mais de 20 anos. Ela fez as aulas e, embora não tenha aprendido a dirigir direito, conseguiu passar no teste prático. “Foi uma temeridade, deixei o carro morrer na lombada, enfim… Nnem sei como fui aprovada. Tanto que, depois, nem fui buscar a carta”, revela a empresária, hoje com 58 anos, sem, quase nunca, ter dirigido.

Adriana conta que, ao ser aprovada, chegou até a ganhar um VW Fusca do pai, na intenção de incentivá-la a dirigir. “Vendi na mesma semana”, revela. “Não gosto de fazer o que não tenho aptidão. E, definitivamente, não sei dirigir bem. Não tenho medo nem nada, mas não é para mim”, confessa a cozinheira de mão-cheia proprietária de uma empresa que organiza jantares e baquetes sob encomenda.

Adriana Figueiredo, que trabalhou como produtora de moda em revistas e já fez produção em cinema, diz que sempre encontra um jeito para não precisar do carro. “Minha filha ia de perua para a escola. Quando ela ficou mais velha e saía à noite, contratava um táxi de confiança para buscá-la”, explica.

Atualmente, aproveita a geografia plana do bairro de Pinheiros, zona oeste da cidade, em que mora e faz muitas atividades a pé. A banqueteira dá a dica para viver sem carro em São Paulo: “Eu me organizo, simplifico as coisas. Se preciso sair para comprar alguma coisa, faço uma lista e trago tudo de uma vez”.

3 – Medo de dirigir

Por medo do volante, Fátima Henriques praticamente só utiliza transporte público, como o metrô. Foto: Arthur Caldeira

Diagnosticada com ceratocone, doença que atinge a córnea, Fátima Eliane Henriques, 60 anos, usa óculos há muitos anos. “Nunca dirigi, sempre tive receio. E, como o grau dos meus óculos é muito alto, também, fico com medo de não enxergar as coisas”, afirma ela, que jamais se sentou ao volante de um carro. 

Moradora do Taboão da Serra, cidade da região metropolitana de São Paulo, Fátima sempre fez tudo de ônibus e metrô, revela. “É rapidinho. Em 40 minutos, eu chego à Dr. Arnaldo e pego o metrô”, diz ela, que elogia os corredores de ônibus das avenidas Francisco Morato e Rebouças, construídos no início dos anos 2000, que agilizou sua locomoção.

Sem emprego desde o início da pandemia, já que trabalhava como caixa em uma casa noturna na Vila Madalena, que fechou, ela não era obrigada a pegar o transporte coletivo nos horários de pico. “Sempre fui no contrafluxo. Enquanto as pessoas voltavam para casa, no Taboão, eu estava indo para São Paulo. E, para volta, tomava o primeiro ônibus, às 5h10 da madrugada, sempre vazio”.

Para fazer compras, opta por mercados que fazem entrega, ou para ir a algum compromisso, hoje em dia, usa os apps de transporte.

4 – Manter é caro

Renata Alves e o marido venderam os dois automóveis e ela leva o filho João a pé à escola. Foto: Arquivo Pessoal

Quando o filho José estava para chegar, família e amigos conseguiram convencer Renata Alves de Souza, 33 anos, e seu marido, Pedro Loes, 40, que eles precisariam trocar de carro. “Na época em que nos casamos,  eu tinha um carro e o Pedro, outro. Vendemos e ficamos só com um compacto. Nunca ligamos muito, era algo mais utilitário mesmo”, relembra a produtora executiva.

Mesmo quando arrumou um emprego em uma agência de publicidade na Avenida Faria Lima, deixava o carro na garagem. “Os estacionamentos eram muito caros. E, com um ônibus só, eu chegava a trabalho”, conta ela. 
Convencidos pela pressão social, acabaram trocando por um automóvel maior. “Todo mundo dizia que criança tem muita tralha, carrinho, mala, enfim…”, diz a carioca, que mora em São Paulo há cerca de 20 anos.
Com o tempo, Renata e o marido foram percebendo que criança não tem tanta tralha assim. “Com 1 ano, ele foi para escola, que ficava a 1,5 quilômetro de onde morávamos, e levava ele a pé. E o carro foi ficando cada vez mais parado na garagem”, afirma ela.

Mesmo antes de a pandemia chegar ao Brasil, o casal fez as contas e decidiu se desfazer do veículo. “A gente colocou na ponta do lápis e viu que não valia a pena manter o carro parado na garagem.”

Para evitar trânsito e ter de ficar procurando vaga para estacionar, a família sempre usou muito transporte público. “Nossa casa fica perto do Metrô Vila Madalena e, quando íamo sair com o José, pegávamos o metrô”, conta.

Atualmente, quando precisa levar o filho ao médico ou a algum outro compromisso, chamam por aplicativo. Até mesmo quando viajam, eles encontram alternativas. “Já alugamos carro ou pegamos emprestado da minha irmã, que também não usa muito. Não faz falta”, diz. Recentemente, testaram até o serviço da Turbi, empresa de compartilhamento de veículos que atua na capital paulista. 

Quando perguntada se sente falta do automóvel para alguma atividade, Renata afirma que só quando tem de levar seu cachorro para tomar banhou ou para uma consulta no veterinário. “Alguns motoristas de aplicativos não aceitam pet. No fim, o carro faz mais falta para o cachorro do que para a criança”, brinca ela. 

5 – CNH vencida e sumida

Décio Galina com os filhos Nicolas e Felipe, então com 10 e 3 anos, respectivamente, na linha de ônibus 856-R Lapa-Socorro.

“Depois que peguei a carta de motorista, nunca mais dirigi”, afirma Décio Galina, 48 anos, que não se lembra nem onde está guardada sua CNH, já vencida. O jornalista se locomove de transporte público por São Paulo (SP), desde quando era um jovem atleta lançador de dardo no Centro Olímpico de Treinamento e Pesquisa Marechal Mário Ary Pires (COTP), próximo ao Parque do Ibirapuera.

“Eu era o mais novo e minha mãe me levava de carro. Os atletas mais velhos, um dia, disseram para ela: ‘não precisa vir buscá-lo, não. A gente vai ensinar o Decinho a pegar ônibus’. Ali, aprendi a tomar o 5154 de volta para casa, no Brooklin”, lembra ele, que tem o hábito de decorar os números das linhas de ônibus.

Até mesmo na época da faculdade, quando todos os jovens querem ter um carro, Décio se divertia nas viagens de ônibus e metrô. “As pessoas não tinham celular, então ficavam de cabeça erguida e trocavam olhares. Era mais fácil conhecer alguém no metrô, já que alguns bancos ficam de frente um pro outro”, diz, saudosista.

Atualmente em seu segundo casamento, Décio tem dois filhos, Nicolas, de 14 anos, da primeira união, e Felipe, de 7, do relacionamento atual. “Minha ex-mulher dirigia e minha atual esposa também dirige, o que evitou que eu precisasse guiar, pois acho que, com filhos, facilita ter carro para as tarefas do dia a dia”, diz.

Privilegiado também por ter sempre morado perto de estações de metrô, como na Vila Clementino e, atualmente, no Parque da Água Branca, admite, Décio curte levar os filhos para passear de transporte público. “As crianças adoram. O Nicolas já vai para todo lado de ônibus e metrô. Com o Felipe, uma vez, pegamos o trem até Jundiaí. Acho interessante mostrar a diversidade da cidade de São Paulo. Sair da bolha”, acredita o jornalista.

Durante a pandemia, confessa, Décio abriu mão de andar de ônibus e passou a pedalar para alguns deslocamentos. Pegou gosto pela bicicleta e, hoje, toda família, incluindo a atual esposa, Carolina, saem para andar de bike no Minhocão, aos domingos. 

A cidade dos carros

  • SP tem uma frota de 6,2 milhões de automóveis*
  • O que representa 11% da frota nacional desse tipo de veículo
  • Com população estimada em 12.396.372 de habitantes, a cidade tem 1 carro para cada 1,9 habitante.

*Fonte: Detran-SP