Marcos Fermanian é presidente da Abraciclo desde 2012. O economista está no quinto mandato consecutivo à frente da associação que reúne as fabricantes de motocicletas, ciclomotores, motonetas e bicicletas instaladas no Brasil. Ele ingressou no setor em 1987, quando passou a trabalhar na Honda – atualmente, é o presidente da divisão de serviços financeiros da companhia. Portanto, conhece muito bem um dos aspectos que mais impactam um segmento no qual 70% das vendas são feitas por meio de pagamento parcelado. O executivo detalhou ao Estadão os avanços na produção de motocicletas em 2021, as perspectivas para 2022 e a evolução proporcionada sobretudo pela aceleração da digitalização
Como foi o desempenho do setor de motocicletas no Brasil em 2021?
Marcos Fermanian: Assim como aconteceu em 2020, por causa da primeira onda (da covid 19), fomos duramente impactados. Embora a produção tenha ficado ligeiramente abaixo do nosso objetivo, que era de 1,2 milhão de unidades, chegamos a 1 milhão. Portanto, foi bastante positivo. Sobretudo em um momento de impacto na cadeia de produção no mundo inteiro, por causa de dificuldades de abastecimento de componentes, aumento de custo das matérias-primas e das commodities. A alta do câmbio no Brasil agravou ainda mais a situação. Apesar disso tudo, a demanda continua aquecida. A nossa cadeia de fornecedores não foi tão impactada quanto a de automóveis. As fabricantes tiveram dificuldades pontuais ao longo do ano inteiro. Porém, 80% da nossa produção é de motocicletas de baixa cilindrada, de até 160 cm³. Esses produtos são altamente verticalizados e internacionalizados. Eles têm de 90 a 95% de índice de nacionalização. Por isso, dependem menos da importação de peças. Então, o impacto talvez tenha sido menor que em outros segmentos industriais.
Abraciclo projeta crescer a produção para 1,2 milhão de unidades em 2022. Como o setor vai alcançar essa meta?
Fermanian: Atualmente, existe um desbalanceamento entre oferta e demanda. A procura continua aquecida por causa de fatores como a expansão dos serviços de entrega na esteira do crescimento do e-commerce. Nos últimos dois anos, o avanço foi exponencial. O maior uso do modal para evitar aglomeração no transporte público também foi muito importante. E, mais recentemente, a alta dos combustíveis contribui para atrair mais consumidores para as motocicletas. Além disso, a oferta de crédito continua alta, sobretudo por causa da chegada dos bancos digitais. Isso gerou mais competição no mercado financeiro. Diferentemente do que acontecia há cinco, seis anos, há muito interesse dos agentes financeiros em oferecer linhas de crédito aos consumidores de motocicletas. Assim, cresceu a oferta e a concessão de crédito para a compra de motocicletas. Por outro lado, o crescimento do número de contaminados pela covid preocupa muito. Em janeiro, registramos alguma perda de produção por causa da falta de gente nas linhas. Além disso, 2022 é ano eleitoral e, como acontece sistematicamente, isso gera muito estresse no mercado. Nossa maior preocupação é manter o distanciamento social, o que diminui a quantidade de trabalhadores nas fábricas. Isso afeta inclusive os deslocamentos. Nossa indústria fica em Manaus e todo transporte de pessoal é feito por ônibus fretados. Por isso, há uma redução da capacidade de entrada e saída de funcionários. Então o maior desafio e manter o controle sobre a pandemia. Só assim a gente vai conseguir ampliar a produção.
Como foi possível aumentar a oferta de crédito para a compra de motocicletas?
Fermanian: Houve um importante avanço da digitalização e do comércio eletrônico. O mercado financeiro também foi beneficiado. Com a disseminação de apps e dos bancos digitais, a forma de conceder crédito mudou muito e está mais ágil. A avaliação por parte dos agentes financeiros e dos consumidores também mudou. No Brasil, há uma economia informal muito grande e, evidentemente, a exigência de comprovante de renda praticamente inviabiliza a concessão do crédito. Mas os agentes financeiros aprenderam e descobriram novos caminhos para conceder crédito a esses consumidores. Evidentemente nem todos que pedem conseguem aprovação. Porém, o mercado vem avançando por outros caminhos para conseguir conceder crédito para esses consumidores.
Como a Abraciclo avalia o impacto da alta dos juros e do dólar nas vendas?
Fermanian: Fazer perspectivas sobre isso é praticamente um atestado de erro. Mas estamos alinhados com os principais economistas e as previsões para o Brasil em 2022. Esse alinhamento vem de uma coisa muito óbvia: a pressão inflacionária deve continuar alta por mais algum tempo. E no Brasil o governo usa a taxa de juros como instrumento a combate à inflação. Assim, se a base inflacionária continuar, a expectativa é de manutenção de taxas de juros altas, o que deve continuar impactando negativamente os nossos consumidores. Assim, a perspectiva não é muito positiva. O que a gente espera e gostaria é que houvesse novos mecanismos de aquecimento da economia. A aceleração do PIB é a única forma de fazer o País avançar e a economia brasileira crescer.
O que o governo deveria fazer para fomentar o setor e a economia em geral?
Fermanian: No caso do nosso setor, a demanda continua bastante alta. O que a gente espera é que as políticas públicas de controle da pandemia continuem sendo implementadas e aceleradas. Essa é a única forma de ampliar nossa capacidade de produção. Além disso, como boa parte dos nossos consumidores é de baixa renda, seria muito bom se a economia voltasse a crescer. Isso ajudaria a recuperar o nível de renda. Isso certamente iria ajudar todo o País e não apenas o nosso setor.
Em 2021, a venda de scooters cresceu mais de 40%. Essa tendência deve continuar em 2022?
Fermanian: Sem dúvida que sim. Aliás, o segmento de scooters é um dos que mais crescem no Brasil há anos. Eles são cada vez mais atraentes para uso em cidades grandes e médias. São uma ótima alternativa ao transporte público. Além de oferecer baixo consumo de combustível, tem a questão da proteção das pernas contra vento, chuva e detritos. O avanço da tecnologia também atrai novos usuários. Eles têm câmbio automático, freios combinados, ABS e sistema start&stop, por exemplo, que reduz ainda mais o consumo. A alta de quase 41% nas vendas representa mais de 100 mil unidades produzidas em 2021.
Isso representa 9,3% da produção total. E a perspectiva para 2022 é chegar a 10,4 de participação, ou 128 mil unidades. Para comparação, em 2017 a produção foi de 55 mil unidades, com participação de 6,5%. Isso mostra como o avanço tem sido grande.
Como está a eletrificação do setor de motocicletas?
Fermanian: A eletrificação veicular é uma realidade no mundo inteiro. A gente está vendo as marcas se mobilizando em busca de alternativas para substituir o motor de explosão. Mas eletrificação só faz sentido se a geração de energia for limpa. Não adianta nada queimar petróleo ou carvão para gerar energia para abastecer o veículo. Evidentemente, há marcas no Brasil pensando em avançar no segmento elétrico, talvez para atender a algum nicho. Essa é uma tecnologia que a gente vê avançar muito rapidamente. As baterias estão menores e mais eficientes. Seja como for, nossos associados estão mais focados no desenvolvimento e no avanço da tecnologia flex, que permite utilizar etanol e/ou gasolina em qualquer proporção. O etanol é um dos combustíveis mais eficientes e limpos quando a gente olha todo do ciclo, do plantio da cana ao consumo no tanque. Também precisamos lembrar das características estruturais do nosso país. Mesmo nos grandes centros ainda não existe uma infraestrutura adequada para atender uma eventual alta na demanda. No Brasil, esse é um movimento que talvez chegue, mas será mais gradativo. Por enquanto, os veículos elétricos atendem um pequeno nicho de mercado.
A Abraciclo mantém ações para melhorar a capacitação de quem usa motocicleta?
Fermanian: Além de oferecer capacitação sobre técnicas de pilotagem, a gente fazia em mofo checkup. Porém, infelizmente tivemos de parar por causa da pandemia. Recentemente, fizemos parceria com uma das maiores empresas de entregas do Brasil para levar mais conhecimento aos motociclistas. Isso inclui a forma correta de pilotar e frear, por exemplo.
A outra questão do convívio no trânsito, que está interligada com a questão comportamental. A gente pode melhorar isso levando informação e educação aos usuários. Estamos conversando há bastante tempo com órgãos reguladores do trânsito brasileiro para tentar levar mais conhecimento ao processo de habilitação. Esse é um tralhando de longo prazo. A Abraciclo tem também um projeto que leva palestras educacionais às escolas de segundo grau. Ou seja, aos jovens que serão futuros usuários. Então, tem sido muito interessante levar conhecimento e despertar a consciência sobre a importância do respeito ao próximo.
O sr. acompanha o setor há um bom tempo. Qual foi a transformação mais importante ocorrida nos últimos dez, 15 anos?
Fermanian: A gente já passou por muitas emoções ao longo desse período. Porém, o maior feito do segmento foi ter mantido um crescimento contínuo até 2011. Em 2000, o Brasil produzia cerca de 500 mil motocicletas por ano. Em 2011, passamos de 2 milhões. Porém, nos seis anos seguintes, houve uma queda vertiginosa e em 2017 produzimos 883 mil unidades. Imagine o impacto em toda cadeia de fornecedores, fabricantes e redes de concessionárias. Como presidente da Abraciclo, eu vivenciei grande parte disso. Os três primeiros anos de quebra foram causados pelo aumento da inadimplência e, por consequência, da redução da oferta de crédito. Mais de 70% das vendas são parceladas por meio de consórcio e planos de financiamento. Acreditamos que sempre houve um grande potencial de mercado. Então, essas quase 1,2 milhões de unidades produzidas em 2021 ainda estão muito distantes do que a gente já viu.
Como a aceleração da digitalização impactou o setor?
Fermanian: De um lado, a digitalização acelerou as vendas por meio eletrônico. E trouxe muitos novos consumidores para esse mundo. Mas isso não surgiu de um dia para o outro. O serviço de entrega por motocicleta, por exemplo, vem se difundindo há anos. O que houve foi a chegada de empresas que coordenam todo esse exército de motociclistas. Elas juntaram as peças do quebra cabeça. Cada pizzaria, farmácia e comércio tinha sua própria frota. Com o avanço do comércio eletrônico, esse processo foi acelerado. Além disso, houve um aumento do número de desempregados em outros setores. E parte dessas pessoas veio para o segmento de entregas. Na outra ponta, até recentemente quase todas as liberações de crédito eram feitas de forma manual. Mas com a digitalização, boa parte do processo passou a ser feito automaticamente. Graças à utilização de novos mecanismos de consulta e checagem de informações.