Na era da eletrificação dos automóveis, até a rotina do engenheiro eletrônico Besaliel Botelho, presidente da Associação Brasileira de Engenharia Automotiva (AEA), se tornou híbrida. O executivo, que também é CEO da Bosch na América Latina, dá expediente em casa e só vai ao escritório se necessário. “Claro que as pessoas querem estar juntas”, diz. “Mas sentar à mesa com fone de ouvido enquanto trabalha em projetos é algo que pode ser feito em casa”, exemplifica.
Formado pela Universidade de Karlsruhe, na Alemanha, e com MBA em administração internacional de negócios pela USP, o executivo de 61 anos reforça que, nesse período, muita coisa melhorou, caso da gestão do tempo, com menos deslocamentos.
Diferenças em relação ao trabalho presencial existem e são encaradas de forma natural. Na falta de alguém para atender à campainha de casa, ele pediu licença durante a entrevista, feita de forma remota, para ver quem estava à porta.
Botelho procura conciliar trabalho com caminhadas, golfe e, claro, carros, que ele diz serem seus “brinquedos”. Sobre a forma de uso do carro, ele vislumbra mudanças. “Antes, o automóvel era usado para ir ao trabalho. Agora, passa a ter função de lazer”, diz. Sua “brinquedoteca” tem Porsche e até um Shelby Cobra V8.
Nesta entrevista, Botelho fala sobre como vê o futuro da mobilidade no Brasil e no mundo, e diz que este “gigante adormecido” tem plenas condições de ser protagonista no campo da tecnologia automotiva se investir na célula de hidrogênio. “Perdemos o bonde do carro elétrico, e não podemos esperar o mundo desenvolver tecnologia para apenas seguir.”
Mobilidade: O senhor imaginaria que um dia viveria uma crise como a atual, na qual o automóvel é vítima de seu próprio desenvolvimento tecnológico, por causa da falta de chips?
Besaliel Botelho: Quando começamos a falar de tecnologias disruptivas, carros elétricos, autônomos, conectividade, acessibilidade a todos, sabíamos que algo viria. Mas ninguém poderia imaginar que uma crise sanitária iria desestabilizar o processo. Houve demanda enorme de eletrônicos [gerada por trabalho e estudo remotos], enquanto a indústria teve de parar. Assim, criou-se a tempestade perfeita. No final de 2020, começou a dificuldade para obter semicondutores. Como a indústria automobilística teve queda forte, a capacidade da indústria [de eletrônicos] foi direcionada para o segmento de bens de consumo. Semicondutores e microchips são produzidos em cinco ou seis grandes fornecedores mundiais. Como se não bastasse, essa tempestade incluiu problemas climáticos nos EUA, onde grande parte dos fornecedores está instalada, e um incêndio na fabricante japonesa Renesas, que atendia a 30% da indústria automobilística mundial. Assim, a resposta é não. Não poderia imaginar que isso iria acontecer.
Como o senhor imagina o carro nacional em 2025? O que ele irá oferecer que ainda não tem? O controle de estabilidade, por exemplo, está atrasado.
Botelho: Trabalhamos em dois pilares: redução de CO2 [com diminuição de consumo e uso de combustíveis fósseis] e maior segurança. Vamos em busca do “acidente 0” para quatro e duas rodas. O controle de estabilidade vai ser obrigatório, assim como haverá motores mais eficientes, com turbo e injeção direta, que privilegiem o etanol. Os carros também deverão incorporar mais air bags e sistemas automáticos de frenagem, não só porque a legislação pede mas porque o consumidor está ávido por esse tipo de segurança. E há uma oportunidade para a engenharia fazer a combinação de etanol com eletrificação. O mundo gostaria de ter um combustível renovável, e não tem. Sou defensor da célula de hidrogênio como forma ideal para redução de CO2. O etanol pode ser fonte de geração de hidrogênio. Nós perdemos o bonde do carro elétrico, e não podemos esperar o mundo desenvolver tecnologia para a gente seguir.
Mas a escala de produção pode derrubar preços? Nos EUA, o Toyota Mirai (que usa hidrogênio) custa US$ 49.500, o dobro do híbrido Prius.
Botelho: Sim, escala derruba preço. Não tenho dúvida de que, até pelo conceito, a célula de combustível vai bater o carro elétrico puro [com baterias] lá na frente. É questão de tempo. Nós, engenheiros, temos habilidade para buscar soluções de menor custo. O Brasil sempre ficou fora do desenvolvimento tecnológico. Fui um dos protagonistas na época do motor flex. A gente se esquece de como havia transtornos quando o consumidor apostava em um carro a álcool e, de repente, não tinha mais álcool nos postos. O País tem flex, o mundo não tem.
O carro 100% elétrico é muito caro no Brasil. À medida que a oferta aumentar e a tecnologia evoluir, é provável que o preço baixe. Em vista disso, o senhor compraria um carro elétrico hoje?
Botelho: Compraria. Temos carros elétricos na empresa, e a dirigibilidade, por causa do alto torque, é muito boa. Ele é extremamente eficiente para curtas distâncias, na área urbana. O custo deve cair nos próximos anos, por causa da escala. Só que tem o aspecto da infraestrutura. No prédio, vai colocar tomada onde? Se a pessoa mora em casa, pode fazer cabeamento diferente, mas, ainda assim, limita o percurso [por causa da necessidade de recarga em viagem].
O senhor acha que teremos carros autônomos no Brasil? Se sim, quando?
Botelho: Os autônomos vão do nível 1 ao 5, sendo que, neste último, não há nem direção. Claro que isso vai demorar. Mas temos o veículo assistido, com tecnologias que auxiliam a manter o carro na faixa de rolamento e também a frear. Carro autônomo precisa de rede 5G, sem nenhuma latência [atraso]. Os veículos precisam se comunicar. O processo está acontecendo, mas requer investimentos altíssimos e não é coisa de um homem só. O veículo autônomo exige parceria e grandes investimentos, porque precisa de competências que não estão dentro da indústria automobilística, caso de inteligência artificial.
No passado, imaginava-se que, no ano 2000, os carros voariam. Até hoje, isso não aconteceu, mas, atualmente, há diversas experiências nesse sentido. O senhor acha que iremos, finalmente, ter carros voadores?
Botelho: Pessoalmente, não sei se vou estar vivo para ver isso. Não sei se haverá carro voador para levar pessoas, mas sim objeto voador para levar coisas. A gente tem experiências com drones. Há vários protótipos, e algumas tentativas bem-sucedidas de drones levando objetos em alguns países. Mas não sei dizer se será utilizado para transporte de massa. Esse é um processo mais longo. Mas virá.