Não se mexe no espaço de carros

Novas formas de deslocamento, como a mobilidade ativa, podem mudar a lógica do transporte e a qualidade de vida das pessoas. Foto: Getty Images

25/01/2023 - Tempo de leitura: 4 minutos, 40 segundos

Por Renata Falzoni*

Se no passado as calçadas eram inexistentes, desconectadas, e os ciclistas eram obrigados a dividir o espaço com motoristas velozes e inconsequentes, hoje existe um esforço tímido para conectar as rotas dos que vão a pé, com faixas de pedestres e calçadas, ainda que precárias. Já no caso da mobilidade em bicicleta, o plano cicloviário, que foi elaborado em 2016 com participação dos ciclistas e da população em audiências públicas junto com a prefeitura, hoje encontra-se negligenciado. O processo está lento e com pouco foco nas conexões entre as ciclovias.

Ciclistas voluntários, que ajudam a prefeitura na Câmara Temática da Bicicleta, são testemunhas da enorme dificuldade que os profissionais encarregados de construir calçadas e ciclovias sofrem para melhorar a mobilidade na capital paulista. A regra única que eles enfrentam diariamente, ainda que no bastidor, é: ‘Não se mexe no espaço dos carros’. Espaço dos automóveis é um tabu dentro da secretaria de mobilidade.

Desrespeito

Tabu é algo proibido, censurado, vedado, vetado e que não interessa ser discutido, muito menos desembaraçado. E as reais necessidades dos planos cicloviário e de caminhabilidade são, até hoje, um tabu dentro da secretaria de mobilidade.

O espaço do carro é sagrado; já o da mobilidade ativa é um coringa que existe para todas as necessidades. Digo isso porque o desrespeito em relação ao espaço da ciclovia é tão real que até mesmo caminhões que estão à serviço da prefeitura usam as ciclovias como estacionamento.

Por mais que a cartilha do desenvolvimento urbano sustentável determine a urgente promoção e conexão dos modos ativos de transporte, o foco entre os gestores públicos que detém o poder ainda é viciado nos automóveis particulares.

As ciclovias surgem, a muito custo, e são instaladas onde é possível: ou seja, onde tem espaço. Não são frutos de um estudo de necessidades, de projeto de cidade sustentável, com resgate do espaço público para usufruto de pessoas e para a melhoria da qualidade de vida de todos.

Além de ciclovias e de calçadas conectadas, é necessário que possamos ter um transporte público de qualidade e que conte com bicicletários funcionais. Esses equipamentos são um convite à intermodalidade e estimulam as pessoas a usarem menos o carro particular e mais o transporte coletivo, além da mobilidade ativa.

Pessoas em primeiro lugar

E isso ainda não é tudo. É urgente o resgate da escala humana das cidades, que começa por acalmar o trânsito nos grandes centros, o que já existe na capital, mas em pouquíssimas vias onde há grande circulação de pessoas.

É fundamental reduzir as velocidades máximas dos veículos motorizados e, com isso, ganhar em velocidade média. É necessário redesenhar as ruas, prover faixas de ônibus, construir ciclovias mais largas e junto às calçadas.

O espaço dedicado aos automóveis precisa ser reduzido e as conversões necessitam ser mais lentas. As faixas de pedestres devem ter ampla guia rebaixada com tempo de travessia suficiente para atender a idosos, crianças e pessoas com deficiência.

Enfim, todo esse manual faz parte do Visão Zero, sistema de administrar a mobilidade onde a máxima é que nenhuma morte ou lesão no trânsito é aceitável. Um movimento global que propõe uma nova abordagem à segurança viária, com ênfase na cidade mais amiga, e foco na mobilidade ativa. E, embora a cidade de São Paulo seja signatária do Visão Zero, a regra por aqui, na real, ainda é: ‘Não se mexe no espaço dos carros.’

Mas o que está por trás da defesa de um transporte que pesa 1,5 tonelada, leva em média 1,2 pessoas cada, que exala veneno, ocupa 13 m² quando parado, 45 m² quando rodando, sendo comprovadamente pouco eficiente para o transporte dentro de um centro urbano e caro para a cidade? Entre outros motivos, é a individualidade do serviço prestado, ‘de porta a porta’, sem paradas intermediárias. Quebrar essa “carrodependência” é uma tarefa árdua que exige mudança de cultura.

Nova mentalidade

Mas há uma luz no fim do túnel. Os jovens estão cada vez mais desinteressados da propriedade de um carro. Eles vão a pé, de bicicleta própria ou compartilhada, de patinete, de transporte público ou por aplicativo e conseguem, na diversidade da escolha, vivenciar uma cidade melhor e muito mais divertida. Essa turma resgatou o prazer no urbano apenas por recusar a ser “carrodependente”.

Para que essa geração não caia na roubada de, no futuro, viver para ter e sustentar um carro para trabalhar e suprir as necessidades da família, é necessário que as infraestruturas já previstas no plano cicloviário e no plano de calçadas saiam do papel, assim como a melhoria do transporte público vire realidade.

O foco da solução não deve ser a mentalidade de que o congestionamento é inevitável, e causado pelo excesso de carros na cidade. A solução consiste em inverter e mudar a lógica ‘carrocentrista’, abrindo possibilidades para outras formas de deslocamentos que podem ser protagonistas ou complementares – no caso da mobilidade ativa -, e oferecendo um transporte público que seja atraente para todas as pessoas.

* Renata Falzoni, é arquiteta e jornalista. Uma das mais conhecidas cicloativistas do País, adotou bicicleta como transporte há mais de 45 anos. É vereadora suplente em São Paulo