Por Renata Falzoni*
Se no passado as calçadas eram inexistentes, desconectadas, e os ciclistas eram obrigados a dividir o espaço com motoristas velozes e inconsequentes, hoje existe um esforço tímido para conectar as rotas dos que vão a pé, com faixas de pedestres e calçadas, ainda que precárias. Já no caso da mobilidade em bicicleta, o plano cicloviário, que foi elaborado em 2016 com participação dos ciclistas e da população em audiências públicas junto com a prefeitura, hoje encontra-se negligenciado. O processo está lento e com pouco foco nas conexões entre as ciclovias.
Ciclistas voluntários, que ajudam a prefeitura na Câmara Temática da Bicicleta, são testemunhas da enorme dificuldade que os profissionais encarregados de construir calçadas e ciclovias sofrem para melhorar a mobilidade na capital paulista. A regra única que eles enfrentam diariamente, ainda que no bastidor, é: ‘Não se mexe no espaço dos carros’. Espaço dos automóveis é um tabu dentro da secretaria de mobilidade.
Tabu é algo proibido, censurado, vedado, vetado e que não interessa ser discutido, muito menos desembaraçado. E as reais necessidades dos planos cicloviário e de caminhabilidade são, até hoje, um tabu dentro da secretaria de mobilidade.
O espaço do carro é sagrado; já o da mobilidade ativa é um coringa que existe para todas as necessidades. Digo isso porque o desrespeito em relação ao espaço da ciclovia é tão real que até mesmo caminhões que estão à serviço da prefeitura usam as ciclovias como estacionamento.
Por mais que a cartilha do desenvolvimento urbano sustentável determine a urgente promoção e conexão dos modos ativos de transporte, o foco entre os gestores públicos que detém o poder ainda é viciado nos automóveis particulares.
As ciclovias surgem, a muito custo, e são instaladas onde é possível: ou seja, onde tem espaço. Não são frutos de um estudo de necessidades, de projeto de cidade sustentável, com resgate do espaço público para usufruto de pessoas e para a melhoria da qualidade de vida de todos.
Além de ciclovias e de calçadas conectadas, é necessário que possamos ter um transporte público de qualidade e que conte com bicicletários funcionais. Esses equipamentos são um convite à intermodalidade e estimulam as pessoas a usarem menos o carro particular e mais o transporte coletivo, além da mobilidade ativa.
E isso ainda não é tudo. É urgente o resgate da escala humana das cidades, que começa por acalmar o trânsito nos grandes centros, o que já existe na capital, mas em pouquíssimas vias onde há grande circulação de pessoas.
É fundamental reduzir as velocidades máximas dos veículos motorizados e, com isso, ganhar em velocidade média. É necessário redesenhar as ruas, prover faixas de ônibus, construir ciclovias mais largas e junto às calçadas.
O espaço dedicado aos automóveis precisa ser reduzido e as conversões necessitam ser mais lentas. As faixas de pedestres devem ter ampla guia rebaixada com tempo de travessia suficiente para atender a idosos, crianças e pessoas com deficiência.
Enfim, todo esse manual faz parte do Visão Zero, sistema de administrar a mobilidade onde a máxima é que nenhuma morte ou lesão no trânsito é aceitável. Um movimento global que propõe uma nova abordagem à segurança viária, com ênfase na cidade mais amiga, e foco na mobilidade ativa. E, embora a cidade de São Paulo seja signatária do Visão Zero, a regra por aqui, na real, ainda é: ‘Não se mexe no espaço dos carros.’
Mas o que está por trás da defesa de um transporte que pesa 1,5 tonelada, leva em média 1,2 pessoas cada, que exala veneno, ocupa 13 m² quando parado, 45 m² quando rodando, sendo comprovadamente pouco eficiente para o transporte dentro de um centro urbano e caro para a cidade? Entre outros motivos, é a individualidade do serviço prestado, ‘de porta a porta’, sem paradas intermediárias. Quebrar essa “carrodependência” é uma tarefa árdua que exige mudança de cultura.
Mas há uma luz no fim do túnel. Os jovens estão cada vez mais desinteressados da propriedade de um carro. Eles vão a pé, de bicicleta própria ou compartilhada, de patinete, de transporte público ou por aplicativo e conseguem, na diversidade da escolha, vivenciar uma cidade melhor e muito mais divertida. Essa turma resgatou o prazer no urbano apenas por recusar a ser “carrodependente”.
Para que essa geração não caia na roubada de, no futuro, viver para ter e sustentar um carro para trabalhar e suprir as necessidades da família, é necessário que as infraestruturas já previstas no plano cicloviário e no plano de calçadas saiam do papel, assim como a melhoria do transporte público vire realidade.
O foco da solução não deve ser a mentalidade de que o congestionamento é inevitável, e causado pelo excesso de carros na cidade. A solução consiste em inverter e mudar a lógica ‘carrocentrista’, abrindo possibilidades para outras formas de deslocamentos que podem ser protagonistas ou complementares – no caso da mobilidade ativa -, e oferecendo um transporte público que seja atraente para todas as pessoas.
* Renata Falzoni, é arquiteta e jornalista. Uma das mais conhecidas cicloativistas do País, adotou bicicleta como transporte há mais de 45 anos. É vereadora suplente em São Paulo