“O Brasil é muito pujante em relação a seus potenciais, importância e relevância mundial”
Nesta primeira entrevista da série Estadão Mobilidade Insights, Besaliel Botelho, executivo que deixou a presidência da Bosch América Latina no dia 31 de dezembro, faz um balanço dos últimos anos da empresa, sobretudo após o início da pandemia causada pelo novo coronavírus, em março de 2020, e aponta caminhos para a redução das emissões de CO2 e consequente descarbonização de vários setores da economia, como a indústria de veículos
O Estadão Mobilidade Insights trará, a partir de hoje, entrevistas com executivas e executivos que decidem os rumos de grandes empresas no Brasil.
A reportagem ouviu representantes de fabricantes de ônibus e caminhões, como Scania e VWCO, de automóveis e comerciais leves, a exemplo de GM e do Grupo Caoa, e de tratores para o agronegócio, caso da New Holland Agriculture.
O Grupo Vamos, dono de várias concessionárias de veículos pesados, e que atua na locação de caminhões e de máquinas da linha amarela, também participa da série. Os 22 líderes fizeram um balanço de 2021 e apontaram metas para 2022.
Nesta primeira publicação, a entrevista é com Besaliel Botelho, brasileiro que deixou a presidência da Bosch América Latina no dia 31 de dezembro, após 36 anos na companhia e dez no cargo. Ele falou sobre erros e acertos, diz que é um patriota e que mantém a fé no Brasil.
Mobilidade: O ano de 2021 foi bastante desafiador. A continuidade da pandemia trouxe ainda mais incertezas. Além disso, a indústria de veículos vem sofrendo com a alta do dólar e falta de matérias-primas e componentes, o que reduziu sua capacidade de atender a demanda. Por outro lado, houve avanço importante de setores como agronegócio, construção civil e comércio eletrônico. Porém, isso gerou uma disparada na demanda por alguns tipos de veículos, como caminhões e tratores. Como o sr. avalia o desempenho da Bosch em 2021?
Besaliel Botelho: A pergunta é muito boa. 2021 foi o ano no qual saímos da fase mais aguda da pandemia e quando passamos a depositar esperanças na vacina contra a covid-19. Assim, desde o início do ano havia uma grande expectativa de retomada dos negócios. Já em 2020, nós da indústria, principalmente a Bosch, conseguimos passar pelo pior momento da pandemia, que foi justamente durante o primeiro semestre de 2020.
A partir do segundo semestre de 2020, após uma série de ações visando a proteção do caixa, e com o sacrifício dos colaboradores, que entenderam que, para preservar seus empregos, teriam de aderir à medida provisória do governo que previa a redução da jornada de trabalho e salários, conseguimos passar pelo pior momento da pandemia. O período de maior incerteza foi o fim do primeiro trimestre.
Então, quando fechamos 2020, já estávamos nos recuperando bem. Sobretudo nas áreas de comércio e industrial. Ou seja, uma das áreas essenciais da indústria, que precisava rodar, era a de peças de reposição. Assim, nós fornecemos muitos componentes e itens para a indústria voltada ao agronegócio. A partir daí, começou uma lenta recuperação, principalmente no segmento da mobilidade de passageiros e de veículos leves. Como resultado, fechamos 2020 com uma alta no faturamento de cerca de 6%. Isso nos deixou bastante otimistas, pois iríamos começar 2021 com uma boa base.
Desde a crise de 2015, a Bosch tomou medidas para se prevenir de imprevistos. Naquele ano, houve um recuo de 50% no mercado da indústria automobilística. O baque foi muito grande e tivemos de nos reinventar. Então, fizemos muitas reestruturações, transformamos nosso portfólio de produtos e lançamos muitos outros com mais tecnologia. Então, vamos dizer que, de certa forma, estávamos preparados para uma retomada no início de 2021. No ano passado, tivemos um bom ganho de participação de mercado em todos segmentos de negócio em que atuamos. Criamos novos modelos e canais de negócio.
Com isso, crescemos muito na área de e-commerce. O segmento de construção civil também teve uma importante alta na demanda. Com isso, nossa área de ferramentas elétricas, por exemplo, se beneficiou. Vamos crescer mais de 43% em relação a 2019. Isso mostra que houve uma forte recuperação da indústria brasileira. Em 2021, devemos ter recorde de faturamento. Houve vários entraves, é verdade.
Como o desarranjo da cadeia de fornecimento, com problemas graves no setor de aço e outras matérias-primas. Mas conseguimos contornar esses gargalos para atender nossos clientes. Ainda há um tema agudo que é o de semicondutores, que são os microchips. A Bosch é uma das principais fornecedoras de eletrônica embarcada em veículos.
Em resumo, eu diria que 2021 foi um ano de crescimento, de ganho de participação de mercado, de lançamentos de novos produtos, com mais tecnologia. Isso em todas as áreas nas quais atuamos, não só na da mobilidade.
Também nas áreas de meio de consumo e industrial. Ampliamos a digitalização e aplicamos muito fortemente os conceitos da indústria 4.0 em todas as nossas fábricas. E também conseguimos atingir a neutralidade de emissão de carbono em todas as nossas plantas e nas demais atividades que temos no Brasil.
Mobilidade: A questão da neutralidade de carbono é muito importante. E uma das soluções que vem ganhando força é a eletrificação veicular. No Brasil, a Bosch ajudou a criar o caminhão Volkswagen e-Delivery, primeiro veículo desenvolvido e feito em grande escala na região. Porém, o sr. me disse recentemente que os elétricos a bateria não são, necessariamente, a solução para todos os lugares do planeta. Assim, como o sr. avalia o processo de eletrificação veicular?
Botelho: Não se trata de eletrificação, mas de descarbonização. Ou seja, o mundo todo busca soluções para reduzir as emissões de CO2, que causam o efeito estufa. E há várias maneiras para fazer isso. A área da mobilidade é uma das envolvidas, mas não é a maior.
Seja como for, há uma corrida já há alguns anos para reduzir o uso de combustíveis fósseis. Porém, não podemos olhar somente para aquilo que sai do escapamento do veículo, por exemplo. É preciso todo o processo de geração da energia que será utilizada nos processos de mobilidade. É o que chamamos de “desde a fonte até a roda”.
Outros falam “até o túmulo”, pois consideram o tempo de durabilidade do veículo. Além disso, é preciso pensar no descarte para eliminar o CO2. Seja como for, com o carro elétrico a bateria, você resolve apenas os problemas dos grandes centros, mas não necessariamente promove a descarbonização do planeta, que é o objetivo. Assim, a energia usada nas baterias deve ser renovável.
O Brasil trabalha com o processo de descarbonização há muitos anos, com o uso da biomassa e do etanol. Somos o país que mais gera energia renovável no mundo. Ou seja, mais de 83% da nossa energia e 45% da nossa matriz energética são renováveis. Acredito que, se a meta é descarbonizar o planeta em 2050, temos de utilizar todas as alternativas disponíveis desde já.
Cada região tem sua especificidade, sua melhor alternativa. No Brasil, creio que a solução passa pela biomassa. Podemos continuar utilizando motores a combustão, por exemplo, na composição híbrida, usando a biomassa e o etanol para viabilizar uma redução drástica do uso de combustíveis fósseis.
É preciso ficar atento à economia de cada país. Bem como à capacidade de investimento. Ou seja, quando se fala de veículo elétrico, é preciso investir em infraestrutura e na própria geração da energia.
A Bosch, por exemplo, conseguiu neutralizar as emissões de carbono utilizando soluções que existem. Assim, usamos apenas lâmpadas de LEDs, instalamos sistemas fotovoltaicos de geração de energia em todas as nossas plantas. Nós geramos a energia que consumimos e colocamos o excesso de produção na rede de distribuição.
Estamos contribuindo para descarbonizar o planeta também no processo produtivo, e isso é muito importante. Entendo que devemos falar de descarbonização e de soluções que reduzem a emissão de CO2 e não de soluções pontuais, como eletrificação e baterias, pois isso são consequências do processo. Creio que, antes de chegar ao carro elétrico, seja puro ou a célula a combustível, o Brasil vai passar por soluções bastante eficientes e que podem ser implementadas mais rapidamente. Isso passa pelo uso da biomassa, uma solução na qual estamos trabalhando nesse momento.
Mobilidade: Neste ano, haverá eleições para presidente da República e Copa do Mundo que, de alguma maneira, também acaba afetando a economia brasileira. No caso da Copa, a gente torce para o Brasil ganhar. Sobre as eleições, independentemente de o eleitor escolher manter o atual presidente ou uma mudança, o que o sr. espera que o governo faça para, por exemplo, evitar a fuga de cérebros do País, e fomentar o desenvolvimento da indústria e da economia em geral?
Botelho: Sou muito otimista com relação a 2022. O Brasil é um país muito pujante em relação a seus potenciais, importância e relevância mundial. Não só nos setores de produção primários, de matérias-primas e no agronegócio. Vamos continuar sendo fortes nessas áreas, mas o País está se modernizando muito rapidamente. Temos cabeças muito brilhantes buscando novos negócios e oportunidades.
Acredito que o Brasil vai se transformar em um grande canteiro de obras em breve. O atual governo fez mais de 121 licitações, que representam mais de R$ 650 bilhões em investimentos em rodovias e ferrovias, por exemplo. Meu tema não é política, mas olhar o Brasil. Sou brasileiro e quero ver o País evoluir.
Tenho acompanhado o que está sendo feito em relação à infraestrutura. Precisamos buscar formas de melhorar o escoamento das matérias-primas e dos produtos do agronegócio. As privatizações também são importantíssimas para reduzir o tamanho do Estado e para o País ganhar agilidade.
Também precisamos vender melhor a imagem do Brasil no exterior. Se fizermos isso, os investimentos externos vêm. Tem de deixar o negócio fluir. O País é tão forte que, se a política não atrapalhar, ele vai sozinho. A iniciativa privada está bastante comprometida com o Brasil. E, embora a tendência seja de que 2022 será um ano conturbado na política, por causa das eleições, nós vamos crescer.
Não concordo com você sobre estarmos perdendo cérebros brilhantes. Para atuar no exterior, o jovem não precisa mais sair. Sobretudo por causa do avanço do home-office. Há muita gente trabalhando no Brasil e recebendo em dólar. E também há bastante gente lá fora trabalhando para o Brasil. Portanto, não acredito que vamos perder mentes brilhantes. Creio que vamos atrair mais cérebros, mas de forma diferente. Muito disso é graças à digitalização. E, se você olhar para frente, a conectividade vai evoluir ainda mais com o 5G.
Seja como for, precisamos resgatar bons valores e trabalhar pela ética. Temos de continuar brigando contra a corrupção, que é um câncer no nosso País. Essa doença desvia recursos e aumenta a desigualdade social. Os valores familiares são importantes.
A educação deve prevalecer nos lares primeiro para que possamos ter jovens com bom carácter e boas atitudes. O Estado tem de colaborar com o processo de educação, que é muito importante. O Brasil é um país para ser construído. Ou seja, é bem diferente da Europa e dos Estados Unidos, por exemplo, que são muito mais estruturados e com democracia bastante madura.
E a construção de um bom país somente será possível se todos trabalharmos juntos. É preciso oferecer emprego e criar oportunidades de negócio e investimentos. Só assim, e não distribuindo dinheiro, vamos conseguir tirar o povo da miséria. Assim, vejo 2022 como um ano de oportunidades e crescimento. Precisamos ser mais brasileiros, acreditar e apostar no País, deixar de “mimimi” e empurrar o Brasil para frente.
Mobilidade: O sr. está na Bosch há 37 anos, sendo que na maior parte desse tempo ocupou cargos de liderança. Além disso, está há dez na presidência da empresa na região da América Latina. Durante sua trajetória na companhia, houve algum momento em que, antes ou após tomar alguma decisão muito importante, não conseguiu dormir?
Botelho: Um dos momentos mais difíceis da minha carreira foi no fim de março, começo de abril de 2020, no auge da pandemia. Eu perdi o sono. Vi o alto risco, com o caixa minando. Minha maior preocupação era manter os colaboradores.
Além do aspecto social, os colaboradores da Bosch são treinados, têm alta competência e custam muito caro. Eu tinha de atravessar o transatlântico Bosch com 10 mil colaboradores a bordo por uma tempestade que a gente jamais tinha visto. Não havia receita de bolo e eu não podia pedir ajuda à Alemanha, porque a tempestade também estava lá. Havia gente morrendo no mundo todo, contaminação, medidas de restrição… Mas aí veio a medida provisória que permitiu adaptar a jornada de trabalho e os salários.
Tivemos de agir rápido. Todos entenderam que precisava haver um sacrifício coletivo para garantir os emprego. Em duas semanas, acertamos tudo com os sindicatos e os colaboradores. Só voltei a dormir melhor depois de maio, quando conseguimos equalizar a questão do caixa e dos empregos. Algum tempo depois, os salários foram recompostos e voltamos a crescer.
Mobilidade: Houve alguma decisão que o sr. tomou e, se pudesse, mudaria?
Botelho: Não. Essa é uma pergunta que me fazem sempre. Eu trabalho muito no propósito e nunca me arrependo, porque somos muito rápidos para fazer eventuais correções de rumo. É claro que erramos e muitas vezes. Mas o importante é, ao perceber o erro, corrigir rapidamente.
A Bosch tem uma visão de longo prazo. Nós criamos os mercados onde queremos atuar. Você usou bem o exemplo dos biocombustíveis e dos veículos flexíveis. Esse mercado fomos nós que criamos, ele não existia. Eu briguei cerca de dez anos por esse mercado. E a tecnologia, que foi criada nos laboratórios da Bosch, em Campinas (SP), transformou a indústria brasileira e o setor do álcool.
Criamos uma solução para reduzir as emissões e, ao mesmo tempo, uma solução econômica para dar livre arbítrio ao consumidor, que passou a poder escolher entre abastecer com álcool ou gasolina.
A Bosch tem esse DNA da inovação. E sempre que você inova, erra bastante. Mas erra para poder acertar. Tenho 37 anos de empresa e 16 na liderança, sendo seis na vice-presidência e dez como o primeiro brasileiro no cargo sem ligação com a Alemanha.
Ou seja, sou o primeiro brasileiro a ocupar o cargo de CEO da empresa na América Latina. Aprendi muito. Não me arrependo de nada. Tenho muito a agradecer porque com trabalho duro o sucesso vem. Atualmente, temos uma equipe muito boa, dedicada. Assim, eu posso sair para outros voos e a empresa não vai ser afetada. Continuará navegando na mesma velocidade e na mesma altura.
Mobilidade: Qual balanço o sr. faz desses dez anos à frente da Bosch?
Botelho: Nesses dez anos nós investimos cerca de R$ 1,5 bilhão em tecnologia e inovação. Além disso, transformamos o parque fabril automobilístico juntamente com nossos clientes. E tornamos os veículos mais seguros.
Trouxemos sistemas como o ABS, que fazem o veículo frear com mais segurança em situações críticas, por exemplo. Também tornamos o veículo cada vez mais conectado, de modo a receber e também coletar e transmitir informações. A tecnologia bicombustível contribuiu para que cerca de 500 milhões de toneladas de CO2 deixassem de ser lançadas na atmosfera. E, mesmo com um volume menor de veículos vendidos, contribuímos para o aumento do valor agregado, graças aos sistemas de segurança e conectividade.
A Bosch, que investe de 7% a 8% do faturamento anual em novas tecnologias e plantas, está de olho no Brasil. Foram dez anos de muitas realizações, lançamentos de novas tecnologias e investimentos. Ajudamos o Brasil a evoluir na área da mobilidade e na indústria 4.0. Então, faço um balanço muito positivo. Estamos em um bom momento, de forte crescimento em relação a 2019. Nesse período curto, estamos praticamente dobrando o faturamento.
Mobilidade: Com a “aposentadoria” da presidência, quais são suas novas funções?
Botelho: Continuo colaborando estrategicamente, sobretudo em temas ligados ao futuro, como energia e mobilidade. Além disso, coordeno o grupo de digitalização da Confederação Nacional da Indústria (CNI). Também sou o presidente da Associação Brasileira de Engenharia Automotiva (AEA).
Assim, vou continuar atuando na interface entre academia, indústria e governo, principalmente nas certificações e comprovações técnicas das tecnologias que virão pela frente. E vou participar de outros conselhos. Ou seja, tenho bastante coisa para fazer e vou continuar atuando fortemente para contribuir com o desenvolvimento do Brasil.
Mobilidade: Durante sua gestão, a Bosch investiu bastante em projetos culturais. A empresa viabilizou, por exemplo, a montagem brasileira de espetáculos como O Fantasma da Ópera, Miss Saigon e Sweet Charity. A empresa apoia outras áreas, além da cultura?
Botelho: Além do apoio à cultura, mantemos o Instituto Robert Bosch, que atua na educação. Investimos cerca de R$ 4 milhões por ano em trabalhos sociais voltados à formação de jovens. Tem um trabalho muito forte com o Senai, por meio da nossa escola com preparação de jovens em várias competências.
Também fazemos esse trabalho com instituições espalhadas pelo Brasil. Com isso, buscamos tirar essas pessoas das ruas e ensinar atividades profissionais para que elas se tornem bons cidadãos. Além de ser um trabalho importante do ponto de vista social, traz muita satisfação pessoal.
Mobilidade: Se o sr. pudesse mandar uma mensagem para o jovem Besaliel Botelho, que acabava de se formar no curso de eletrônica em Campinas, no fim dos anos 1970, qual seria?
Botelho: Eu não me formei em Campinas. Aos 18 anos, me aventurei na Alemanha e me formei na Hochschule Karlsruhe, Universidade de Ciências Aplicadas de Karlsruhe, na Alemanha.
Fiz faculdade de engenharia eletrônica com especialidade em telecomunicações. Eu diria: “Entra na Bosch, ela é uma boa empresa. E vai te ajudar bastante na sua carreira profissional e para ampliar seus conhecimentos”.
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