Samba e mobilidade
Por Matthew Shirts*
2 minutos, 54 segundos de leitura
19/02/2020
Se eu sugerisse para você que montássemos juntos uma peça de teatro, um musical, digamos, com trilha sonora de samba, cantada e acompanhada por cavaquinhos e centenas de percussionistas, e que tanto a trilha como a letra dela e também o próprio enredo da peça fossem escolhidos em eleições promovidas entre o próprio elenco, de milhares de pessoas, amadores, na maioria, e que, veja que genial, todos ou quase pagarão pelo próprio figurino, bem, talvez você até questionasse a viabilidade da nossa apresentação ou mesmo a sanidade do meu processo mental. “Não vai dar certo isso aí” seria uma resposta razoável para tal proposta.
Quando eu contasse que, na minha concepção, não apresentaríamos a nossa peça no teatro, mas numa avenida, com o elenco todo dançando (é um musical, afinal), ao ar livre, faça chuva ou faça sol, ao longo de 1 quilômetro, com tempo de duração pré-determinado (e rígido) e que vamos convencer outros grupos a fazerem o mesmo e a se apresentarem na mesma noite, durante a madrugada, até o dia raiar, num formato de competição, com juízes até, daí você poderia me tachar ou de visionário ou mesmo de louco.
ARTE QUE SUPÕE MOVIMENTO
Mas o desfile das escolas de samba, seja aqui em São Paulo, seja no Rio de Janeiro, é isso aí. Não inventei nada na descrição acima. Começa já na década de 1930 e vem forte até os dias de hoje, graças a Deus. E desde sempre gira em torno da mobilidade. Ninguém fica parado no Carnaval. É uma arte que supõe o movimento, em geral, de milhares de pessoas.
Sambódromo nada mais é que um teatro gigantesco feito para acomodar o movimento de elencos numerosos. A pista tem, diga-se de passagem, o melhor acabamento da cidade, quiçá do País. E a mobilidade é um dos temas perenes dos desfiles. Dão-se notas para “evolução” e “harmonia” e trata-se de um dos poucos momentos no ano em que a falta de pontualidade é punida com rigor. Levar tanta gente ao Sambódromo não é brincadeira. Parece uma operação de guerra, com centenas de ônibus enfileirados, prestes a sair em formação das quadras das escolas espalhadas pela cidade. Só que, no lugar de soldados uniformizados, os busões levam foliões fantasiados. (O Carnaval é a antiguerra, no fundo.)
O momento de entrar no ônibus é mágico, diga-se para quem nunca desfilou. Os sambistas enchem as lotações, alegres e muitas vezes ligeiramente embriagados. Buscam acomodar os chapéus, as asas e as alegorias, que nem sempre cabem ali com facilidade. Há veteranos como eu e jovens lindas a mostrar seus belos corpos. Todos vão para o mesmo lugar, com o mesmo objetivo, que é sambar e cantar e se divertir até ganhar o Carnaval. Somos todos atores em uma espetacular peça de teatro com uma única apresentação.
É preciso caprichar. Não conheço nada igual no mundo todo. O desfile das escolas é uma forma de arte da qual o Brasil pode e deve se orgulhar. É um formato próprio, mais rico que uma parada qualquer, que organiza os moradores de algumas das nossas maiores cidades em estrelas de um teatro em movimento. Vida longa ao Carnaval.
* Matthew Shirts nasceu na cidade de Del Mar, na Califórnia, EUA. Desde 1984, mora em São Paulo.
Quer uma navegação personalizada?
Cadastre-se aqui
0 Comentários