Se os carros fossem geladeiras
Afinal, o que está sobre a mesa é o futuro das cidades da mobilidade, da economia e principalmente da saúde pública
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16/07/2025

Imagine se, desde sempre, as geladeiras dependessem de um motorzinho a combustão. Haveria tanque, escapamento e aquele ronco permanente na cozinha. Todo semestre, velas e filtros precisariam ser trocados; volta e meia, correias arrebentariam na pior hora; e o ritual semanal de parar no posto para encher o tanque viraria parte da rotina doméstica.
Agora surge um modelo diferente: basta ligar na tomada — e ele funciona em silêncio quase absoluto. Alguns garantem que painéis solares no telhado dariam conta de alimentá-lo o dia inteiro, ousadia e tanto para um eletrodoméstico historicamente preso ao cheiro de gasolina.
A nova geladeira elétrica aposenta pistões, óleo e escapamento de uma vez só. O fabricante chinês fala em até 80 % de economia operacional. Sem galões inflamáveis na área de serviço, caem também os gases irritantes que agravam a asma das crianças e elevam a pressão dos avós.
A cozinha fica menos abafada, embora o fogão a gás continue como principal fonte de calor — e sempre aparece um parente para dizer que “esse mormaço é um ciclo natural”, nada a ver com emissões.
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Como toda novidade, surgiram vídeos alarmistas nas redes: um exemplar em chamas na China, supostamente impossível de apagar, eis o fogo perpétuo, apesar do combustível gerar mais calor.
Parece aterrador, mas estatísticas de seguradoras mostram que motores a combustão sofrem, em média, 61 vezes mais incêndios do que sistemas elétricos modernos. O perigo, portanto, já morava em casa; apenas passava despercebido quando disfarçado de rotina.
Mesmo assim, o consenso do setor é inequívoco: a eletrificação é irreversível. Até que tudo seja elétrico, surgem defensores das geladeiras híbridas — um motor auxiliar flex para a eventualidade de um apagão prolongado. Peças, oficinas e profissionais dos biocombustíveis aplaudem a ideia: preserva-se boa parte da velha cadeia econômica extrativista.
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Admito: ninguém gosta de impostos. Mas seguiria pagando de cinco a oito vezes mais para abastecer e revisar minha geladeira “fumacenta”, enquanto o modelo plug-in 100% elétrico pouparia recursos me devolvendo o silêncio. Ainda assim, influenciadores ligados à indústria de combustíveis insistem que é melhor continuar trocando filtros e lubrificantes do que migrar para algo “difícil de revender”.
E os mecânicos? Quem brunia cilindros agora pode atualizar software, trocar placas ou instalar inversores. Saem o torquímetro e a graxa; entram o PC, multímetro e o osciloscópio. O trabalho manual não desaparece — apenas muda de ferramenta, detalhe que raramente aparece nos discursos apocalípticos.
Basta lembrar dos celulares. As baterias evoluíram, os carregadores se popularizaram e ninguém jamais levou o telefone ao posto de combustível para abastecer com etanol. Plugamos antes de dormir; na manhã seguinte, tudo certo. Por que seria diferente com carros — e, por extensão, com geladeiras imaginárias a combustão?
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A escolha, no fim, é simples: continuaríamos a encher um tanque de combustível fóssil dentro de casa ou adotamos motores elétricos silenciosos, que reduzem custos, emissões e consultas médicas?
Quando essa resposta amadurecer, veremos que a geladeira era só metáfora: o que está sobre a mesa é o futuro da mobilidade, das cidades, da economia e principalmente da saúde pública.
Geladeiras não são carros, não têm rodas e jamais precisaram de baterias — mas, agora que as baterias evoluíram, oferecendo autonomia robusta e uma longa vida útil, muitas vezes maior que a vida útil do próprio carro, podemos finalmente nos dar ao luxo de comparar.
Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião do Estadão
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