Perus, na região noroeste de São Paulo, é o marco zero de Jéssica Moreira, que encontrou na escrita seu lugar no mundo. A jornalista e escritora de 30 anos conta que foi em um cursinho popular que conheceu mais e melhor a história de seu território, uma região onde surgiu a primeira fábrica de cimento do país, houve uma greve de sete anos pelo conceito da não-violência nos tempos de repressão e foi encontrada a vala clandestina em que foram enterradas mais de mil pessoas – desaparecidos políticos da ditadura militar.
Por meio de vários estilos narrativos, Jéssica ergue pontes entre a periferia e o centro – e acaba de lançar, pela editora Patuá, o livro VÃO: Trens, Marretas e Outras Histórias, sobre o cotidiano de quem usa esse meio de transporte na maior cidade do Brasil.
A tessitura de um território
Perus, pelo olhar de Jéssica, é uma região cheia de resistência e sonho. “Tudo isso é matéria-prima para os meus escritos, mas também para a minha formação enquanto mulher negra e periférica. É daqui que parto, mas é para cá que sempre volto com a vontade de trocar e partilhar o que aprendi.”
Jéssica começou a ler aos 6 anos e de cara devorou um livro inteiro. Cresceu rodeada de histórias em uma casa de quatro cômodos onde viviam sete pessoas. Em uma poltrona escondida no canto da sala brincava de ser escritora.
“Sempre acompanhei minha mãe, manicure, no dia a dia do salão ou na casa das clientes, ouvindo muitas histórias. Escrevia tudo do meu cotidiano em meu diário. Era criança, mas já entendia o esquecimento do meu avô, que tinha Alzheimer”. Com medo de perder a memória, Jéssica escrevia.
Na escola, a professora Eliana, uma mulher negra, apresentou para a turma o substantivo abstrato para dar nome a sentimentos. A menina de 8 anos, que já amava inventar histórias, teve um “espanto literário” e se encantou com a possibilidade de escrever sobre o que carregava dentro de si, mas era invisível.
“Hoje, depois de muitas sessões de terapia, entendi que a escrita me ajudou a dar forma ao que eu sentia, mas não sabia expressar. A palavra me organizou e é assim ainda hoje. Foi assim que a poesia apareceu na minha vida”
Jornalismo ao estilo literário — Jéssica bebe de diversos estilos narrativos. Começou escrevendo textos jornalísticos sobre o lugar onde mora e, ao lado de outras jornalistas, fundou o Nós, Mulheres da Periferia. O coletivo é parceiro do Expresso Na Perifa e Jéssica é uma de suas diretoras.
Para ela, fazer jornalismo a partir da perspectiva dos territórios é uma forma de ter um olhar mais atento. “Tudo pode ser pauta. Entendo que minha experiência como comunicadora a partir desses espaços me ajudou a treinar diariamente o olhar”, diz Jéssica.
Mesmo quando escreve uma reportagem, um gênero de texto completamente distinto da poesia, Jéssica busca trazer o estilo literário para sua escrita por enxergar esse modo de contar histórias reais como uma maneira de dar importância à trajetória das pessoas. “Nós, enquanto população negra, precisamos nos atentar sempre à estética, no intuito de criar outros imaginários e narrativas. Escrever é uma forma de fotografar nosso dia a dia de forma cuidadosa e sensível”, considera.
A escritora também organiza a Festa Literária Noroeste (Flino), evento anual com o objetivo de fortalecer a cena cultural e literária das periferias.
UM LIVRO PARA LER NO TREM
À venda no site da editora Patuá,VÃO: Trens, Marretas e Outras Histórias é um livro de crônicas poéticas e microcontos sobre o cotidiano das populações que utilizam os trens na cidade de São Paulo. A Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) estima ter transportado 867,7 milhões de passageiros ao longo de 2019. Com a chegada da pandemia, em 2020, as populações das periferias não deixaram de usar o transporte público para se deslocar.
As histórias do primeiro livro de Jéssica Moreira têm como cenário a Linha 7 Rubi, que liga o Brás — no centro de São Paulo — ao município de Jundiaí. Somente essa linha chegou a transportar quase 4,5 milhões de pessoas em julho do ano passado. Os distritos de Perus e Francisco Morato levaram mais passageiros.
Baseado na própria rotina e na observação dentro dos trens no trajeto Perus — Luz, o livro mostra os desafios de mobilidade urbana e direito à cidade enfrentados por quem mora nas margens da capital paulista, com temas como solidão, cansaço, fome, amor, violência e solidariedade.
O prefácio é da também escritora e cronista Paloma Franca Amorim, que escreve: “Com uma escrita que perpassa o apuro descritivo da crônica e os sobrevoos e rasantes do poema, a autora focaliza os entreatos que divisam o trem da plataforma, buscando os eventos que lhe demarcam como território de fenômeno populacional para além das tipologias capitalistas. Nesse livro, Vão, gente é gente mesmo – indivíduos e sociedade – percorrendo as dobras das materialidades e intersubjetividades a cada paragem, através de texturas, sons e espessamentos explorados habilmente pela autora”.
A obra é dividida em quatro partes, ocupadas com textos curtos: Cuidado com o Vão entre o Trem e a Plataforma; Shopping Trem, Amor de Trem é Passageiro e Última Estação.
“É uma pontuação sobre o direito à cidade que nos é, diariamente, negado. Tudo isso a partir de histórias que fui testemunha ocular. Tudo isso a partir da poesia que encontrei dentro desse lugar tantas vezes insólito. Não é sobre romantizar nossas dores e dificuldades enquanto periféricos, mas lembrar que, em cada vagão, há muitas vidas, trajetórias de gente que constrói essa cidade”, completa Jéssica.
A cara acorda grudada Ramela mexida ao gosto de aço Esmaga A escada não rola o buraco é vala Os meninos são velhos os velhos não sentam O isopor racha Água pisada Escorre O último degrau abraça os pés todos comidos pelo tempo Em chão todo ocupado de ratos e baratas Continuamos formigando
Os textos que compõem o primeiro livro solo de Jéssica começaram a ser escritos em 2012, quando ela os publicava em uma rede social. Os amigos e seguidores gostavam das histórias e a incentivaram a escrever mais. Quando se deu conta, já tinha um número de textos suficientes para a publicação de um livro.
“Cada viagem de trem dá um livro. Não existe cópia, tentativa de fazer o mesmo texto, porque toda viagem é inédita. O meu convite é que todo mundo pare e olhe ao redor do cotidiano. Está aí a grande matéria-prima para a literatura”
Os contratempos da rotina de jornalista a fizeram paralisar a publicação do livro algumas vezes, o que no fim Jéssica considera positivo, porque os textos amadureceram e ela conseguiu trabalhar sua insegurança, problema que lembra ser comum nas mulheres, principalmente as negras.
“Passei todo o ano de 2020 estudando literatura, com foco em poesia. Pausei a obra de novo, em meio à pandemia. Não me sentia segura outra vez. A insegurança bateu várias vezes nesse processo. Ao longo dos aprendizados do curso, fui melhorando a obra. Novos colegas leram e isso foi bem importante. É um livro que recebeu diversas leituras”, compartilha Jéssica. “Espero que as pessoas se sintam representadas e, as que não são, possam conhecer um pouco mais da ponte para cá, sem preconceitos ou estereótipos.”
O contrato com a editora Patuá foi assinado em janeiro e, em julho de 2021, o Grupo Pandora de Teatro, também de Perus, transformou Vão em um curta-metragem bem aceito pelo público.