Não é exceção o caso da criança de 11 anos que, grávida de um estupro, foi proibida por uma juíza de fazer um aborto legal. Embora as meninas de até 14 anos sejam as principais vítimas de crimes sexuais registrados oficialmente no País, poucas têm acesso à interrupção da gravidez. Especialistas atribuem a situação a uma série de burocracias.
Acompanhada da mãe, a criança procurou o hospital da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) com 22 semanas de gestação. A equipe médica rejeitou o aborto. Houve judicialização do caso e a juíza Joana Ribeiro Zimmer mandou a menina para um abrigo, impedindo que fosse submetida ao procedimento.
O caso foi revelado pelos sites Portal Catarinas e The Intercept Brasil. As reportagens mostraram trechos da audiência com a criança, em que a magistrada fala para a menina manter o bebê. A juíza, agora alvo de protestos e processos, foi afastada por causa de uma promoção ocorrida antes do caso.
As principais vítimas de estupro no Brasil
Abortos por motivos médicos
A coordenadora institucional do Fórum de Segurança Juliana Martins destaca que, na realidade, os números são ainda piores, porque há alta subnotificação de crimes sexuais. “É muito permeado por vergonha, questões sociais, ainda há um tabu em torno desse tema.”
Embora a Lei 12.015 considere como “estupro de vulnerável” qualquer conjunção carnal com menores de 14 anos, a maioria das meninas não têm acesso ao aborto legal. O Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos aponta que 17.579 das crianças, pré-adolescentes e adolescente dessa faixa etária tiveram filhos em 2020. No ano anterior, foram 19.333.
A pesquisadora Emanuelle Góes aponta uma série de barreiras que dificultam o acesso, a exemplo do procedimento só ser oferecido em algumas capitais e cidades de maior porte, o que exige deslocamento e custos, e do acolhimento insuficiente dessas vítimas pelas autoridades.
Ligada ao Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde da Fiocruz Bahia, Emanuelle destaca que as meninas costumam demorar mais do que as mulheres para identificar e reportar esse tipo de gestação, diante dos estigmas, da falta de informação e do autor do crime majoritariamente ser uma pessoa conhecida ou parte da família. “A gente tem essa grande discrepância entre as que conseguem acessar o serviço de aborto legal e as que acabam vivendo a gravidez na infância e adolescência. Isso mostra como várias políticas públicas não estão sendo efetivas para interromper os ciclos de violência.”
O Expresso na Perifa ouviu especialistas na causa indígena sobre abuso sexual na infância. “Desde o descobrimento do Brasil a gente vê que nossas crianças indígenas foram estupradas, violentadas. Os portugueses chegaram aqui, usaram as nossas indígenas como objeto sexual para eles. O Brasil foi invadido e quebrou-se a liberdade do nosso povo”, disse Eleonora Pereira da Silva, defensora dos direitos humanos e pertencente ao povo Tabajara. Leia a reportagem completa
Lei e saúde — De acordo com o Código Penal, o acesso ao aborto legal é previsto “se não há outro meio de salvar a vida da gestante” e no “caso de gravidez resultante de estupro”. Desde 2012, há uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental do Supremo Tribunal Federal que permite o procedimento em casos de fetos com anencefalia.
No caso da infância e da adolescência, a gestação apresenta risco de vida. O sistema de informações sobre mortalidade do SUS diz que as mortes de 1.549 garotas de até 14 anos (em 2020) foram relacionadas à gravidez. “Abortos realizados no primeiro trimestre [de gestação] são 14 vezes mais seguros que um parto”, ressalta a pesquisadora Marina Jacobs, doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal de Santa Catarina. Em seus estudos, Marina identificou que hospitais costumam estabelecer uma idade gestacional máxima, com base em uma nota técnica emitida em 2012 pelo Ministério da Saúde dizendo que “não há indicação para interrupção da gravidez após 22 semanas de idade gestacional”. A advogada Marina Ganzarolli lembra, contudo, que essa nota técnica não tem valor legal.