O livro História da Maconha no Brasil, de Jean Marcel Carvalho França, é um amplo trabalho documental e histórico que, além de descortinar ao público a trajetória da cannabis no País, enriquece o debate, porque extrapola a discussão do uso terapêutico e da criminalização que geralmente dominam qualquer conversa. Publicado pela primeira vez em 2015 pela extinta editora Três Estrelas, o livro ganhou em 2022 uma nova edição, agora pela Jandaíra.
Em sua investigação, o historiador Jean Marcel Carvalho França resgata eventos e personagens simbólicos e constata as primeiras relações da sociedade com a maconha, entre os usuários pouco notados no século 19, até a construção da imagem negativa e associada principalmente à população negra e marginalizada no século 20 — e que persiste.
O livro possibilita entender de que maneira o canabismo — ato de fumar ou consumir maconha — foi incorporado no Brasil ao longo dos anos, em uma análise que escapa à simplificação do discurso de benefícios e malefícios. Entretanto, o autor é contido ao falar sobre a contribuição da obra para entender os dias atuais. “Creio que ajuda um pouco, mas com ressalvas, pois a história do canabismo no Brasil não é nem contínua nem estável”, diz França, que também é professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp).
A maconha e o Brasil — Aprendemos na leitura que os primeiros registros conhecidos da maconha são os do cânhamo, derivado da planta, que servia para a produção de medicamentos, fibras, vestimentas e papel, na China, nos anos 4000 a.C. Depois, a expansão marítima levou a cannabis para Europa, América e África.
No século 19, a planta era cultivada no Brasil, sobretudo na região nordeste, para produção de fibras e cordas. Também havia plantios para fins medicinais. Cultivos trazidos por marinheiros portugueses. A partir dos anos 1900 surgem teorias sobre a população negra e o uso da maconha.
Os negros, uma vez libertos da escravização, exerciam o canabismo, comum em algumas regiões da África. Aos poucos a sociedade atribuía a eles diversos estigmas, a exemplo de vagabundagem, ineficiência no trabalho e, sem nenhuma comprovação científica, que o consumo recreativo da maconha instigava os homens a cometer crimes. Uma das afirmações do livro de França é que o Brasil tem papel fundamental na criminalização da maconha no mundo.
Durante o século 20, o assunto ganha relevância política e a pesquisa do autor destaca aí a construção de conceitos depreciativos e racistas desenvolvidos na época, em especial pelo médico e político José Rodrigues da Costa Dória. Segundo Dória, o fim da escravidão trouxe prejuízos para a sociedade e, um desses resultados, seria a proliferação da cultura do uso recreativo pela liberdade da população negra. “Vício pernicioso e degenerativo de fumar as sumidades floridas da planta aqui denominada fumo de Angola, maconha e diamba”, afirmava o médico.
O combate às drogas, estruturado nesse passado criminalista contra a população negra, tem sido crucial para os negros. “Atualmente, a situação é outra, pois há ingredientes novos [o tráfico internacional, facções criminosas, controle de território]”, acrescenta França.
Criminalização de negros e periféricos — Para Luísa Saad, autora do livro Fumo de Negro: a Criminalização da Maconha no Pós-Abolição, a criminalização reflete a política de repressão exercida desde a proclamação da República. A escritora lembra que as brigadas militares, as policiais militares de hoje, foram criadas logo após a abolição da escravidão. Com o fim do sistema escravista, pelo menos em tese, houve um aumento significativo de pessoas negras pela cidade. Daí surge a necessidade de “fiscalizar essa população” e criminalizar seus costumes e culturas. Visão semelhante à do médico Dória.
Ainda segundo Luísa, a proibição da maconha no Brasil aconteceu em 1932. “Com o passado escravista permeando o pensamento e a opinião da sociedade, as polícias trabalhando para o encarceramento, nós construímos a ideia de sociedade que temos hoje”, afirma.
O combate às drogas afeta desproporcionalmente a população negra. Os negros e periféricos são maioria em detenções relacionadas à drogas, seja por tráfico ou consumo. A proibição e a criminalização, estruturadas no século 20, corroboram para penalização da população negra nos dias atuais. Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 66% da população carcerária masculina é negra e 30% dessas prisões são relacionadas ao tráfico de drogas.
O relatório Raio-X das Ações de Policiamento, publicado em agosto de 2022, analisou, durante dois anos, cada evento relacionado à criminalidade e à violência que circularam em mídias, redes sociais e sites desses estados. Entre outras conclusões, o estudo aponta que o combate à droga resulta no encarceramento em massa da população negra e na normalização das mortes de inocentes em operações policiais nas comunidades. Os Estados analisados foram Bahia, Ceará, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo.
A escritora Luísa ressalta que a cultura da população negra não deve ser deixada de lado. A autora lembra a relação da maconha com a religião, ancestralidade e cultura africana. “A maconha no Brasil faz parte desses africanos escravizados e tudo indica que a ocultação dessa cultura foi uma forma de deslegitimar os negros parante o Estado”, completa a autora.
A defesa do consumo de maconha vem ganhando cada vez mais adeptos, segundo a organização da marcha da maconha em SP. Evento político a favor da legalização e descriminalização, evidenciou o crescimento desse movimento. Há, também, a defesa do plantio para fins medicinais.
No Brasil, passa pela Câmara Legislativa do Distrito Federal o Projeto de Lei (PL) 2899/2022, que sugere alteração na lei para cultivo da maconha para fins medicinais e estudos científicos. O projeto visa a autorização para o cultivo da maconha para fins exclusivamente medicinais e científicos.