‘Mais um 14 de março. Quem mandou matar Marielle Franco?’

'Só havia uma forma de interromper uma força da natureza como Marielle Franco, e foi a ela que apelaram. Mal sabiam que Mari era semente e nós somos seus frutos', escreve o advogado Joel Luiz Costa. Foto: Instituto Marielle Franco/Mayara Donaria/Divulgação

Era uma quarta-feira normal até então. Eu estava em Salvador, onde acontecia o Fórum Social Mundial de 2018. Militantes de várias idades e lugares se encontravam na capital da Bahia – a cidade mais preta do mundo fora do continente africano. À espera do jogo do Flamengo na Libertadores, nosso grupo tomava cerveja na orla. Foi então que chegou no WhatsApp de um dos ativistas o link para uma reportagem do portal O Dia que falava de uma tragédia em oito linhas. A vereadora Marielle Franco havia sido assassinada no Rio de Janeiro. O motorista Anderson Gomes também morreu.

Quatro anos se passaram desde aquela noite – que nunca termina – e uma pergunta segue viva: quem mandou matar Marielle? No último domingo, o jornalista André Rizek questionou na rede social a resolução do crime. “Quem matou Marielle? Chegamos a quatro anos de uma pergunta que as autoridades simplesmente não conseguiram responder.”

Não conseguiram ou não quiseram?

Quem pesquisa segurança pública no Brasil sabe que, em regra, homicídios são casos de baixíssimo índice de resolução em nosso País. A pesquisa Onde Mora a Impunidade, do instituto Sou da Paz, aponta, a partir do estudo de casos iniciados em 2018, que a maioria dos crimes dessa natureza termina impune. Dos 17 estados que apresentaram dados passíveis de ser analisados, o índice nacional de resolução ficou em 44%.

No Rio de Janeiro, onde Marielle foi eleita e assassinada, a taxa está em 14%. A cada 10 pessoas mortas no Estado, menos de dois crimes são solucionados. Se os números já assustam, o que nos deixa ainda mais incrédulos é pensar que, num país que tem a terceira maior população prisional do globo terrestre, apenas 9,3% dos presos respondem por homicídio, a pior transgressão do ordenamento jurídico.

Há diversas explicações para esses números e não pretendo exaurir o tema, mas vamos pincelar alguns fatos racializados no Brasil (e no Rio): 75,7% das vítimas de homicídio são negras; no Rio, 86% das pessoas mortas pela polícia fluminense são negras; em 2018, o número de assassinatos nessa população aumentou 11,5% enquanto entre os não negros caiu 12,9%.

Essas informações não são triviais. Estão na gênese do problema. Saber quem mata e quem morre, no País que mata um jovem negro a cada 23 minutos e que está em primeiro lugar no ranking dos que mais prendem pessoas, é essencial para entendermos por que a vida vale tão pouco no Brasil e os homicídios seguem sem um índice aceitável de resolução.

+Nas redes sociais, aliados cobram a elucidação do caso (Estadão)

Voltando à história da Mari, antes de seguir vale lembrar que ela foi assassinada no mesmo período em que ocorria no Estado do Rio de Janeiro uma intervenção do governo federal no controle da política de segurança pública. À parte disso, é preciso separar o joio do trigo: há, sim, uma dificuldade nacional de dar cabo das investigações de crimes consumados contra a vida. Existe, porém, uma política de desinteresse na elucidação de algumas mortes. Não conseguiria relacionar e analisar os motivos para isso em um único texto, mas posso dizer que o brutal assassinato de Marielle entra no segundo grupo.

Não é que o Estado brasileiro não saiba dizer quem mandou matar Marielle Franco. É que falta ao Estado, branco e experiente em exterminar e promover o apagamento de figuras negras, o desejo de responder a essa pergunta. Seja por ser cúmplice, seja por ser beneficiado por ele. Afinal, só havia uma forma de interromper uma força da natureza como Marielle Franco, e foi a ela que apelaram. Mal sabiam que Mari era semente e nós somos seus frutos.


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