Sobretudo na primeira metade do século 20, como não eram reconhecidas como capoeiristas, muitas figuras femininas que desafiaram as regras carregavam uma ficha criminal extensa. A valentia, a coragem e as histórias não contadas dessas personagens fizeram com que a assistente social e escritora Paula Juliana Foltran Fialho desejasse investigar o assunto. Para isso, ela foi até Salvador (BA).
Desse mergulho surgiu a tese de doutorado que deu origem ao livro Mulheres Incorrigíveis (Dandara Editora), um trabalho que valoriza o protagonismo e a presença na capoeiragem de três figuras centrais: Rosa Palmeirão, Idalina e Francisca Albina dos Santos, mais conhecida como Chicão.
Paula diz que deixou a sociologia para cursar história por amor à capoeira, a necessidade e o compromisso político com a trajetória das mulheres nessa cultura. A inquietação da autora (e capoeirista) nasceu da própria dificuldade de lembrar nomes de mestres importantes que não fossem homens. Chegou a ouvir que estudar o tema seria como tirar leite de pedra. Na prática, porém, a pesquisadora encontrou mais de 400 mulheres capoeiristas nos documentos do Arquivo Público do Estado da Bahia.
Por sua força ou pela arte de gingar, essas brasileiras eram taxadas de desordeiras e rebeldes. Muitas receberam apelidos masculinos — foi o caso da Chicão, que sempre usou a capoeira para se defender
No período estudado, a presença da mulher no mundo para o público em geral se restringia a ser donzela ou puta. Essa foi a constatação feita por Paula. Além de os atributos da feminilidade — para o padrão da época — serem negados pela sociedade a negras e periféricas, fica claro nos registros históricos que as que praticavam a capoeira eram vistas como prostitutas.
Ainda que fossem consideradas menos mulheres do que as outras, elas não deixaram de frequentar rodas e jogar. “São incríveis, porque continuam insistindo em aparecer. Insistiram tanto que uma hora foram vistas e agora está todo mundo pesquisando mulheres na capoeira”, afirma Paula.
Contexto Histórico
Foi só na década de 1980 que as mulheres — conquistando alguma autonomia financeira e estudando mais — começaram a frequentar academias para treinar capoeira. A atividade era considerada criminosa para todo mundo entre 1890 e 1937. Depois de muita repressão, marginalização, perseguição e extermínio policial, entraria em uma nova fase com a descriminalização, quando surgiram academias. A questão é: o público feminino foi praticamente excluído dessa possibilidade. No máximo, participava de rodas. Para entrar na escola era necessário ter carteira de trabalho ou alguma ocupação estudantil. A maioria delas, por sua vez, era dona de casa e/ou não tinha estudo.
Registros oficiais — As histórias de Rosa Palmeirão, Idalina e Chicão foram esquecidas, mas no começo do século 20 estiveram nas notícias de jornais e em boletins policiais. Elas eram famosas por usar a capoeira para se defender em situações de risco e até reagir a abordagens policiais violentas.
Rosa Palmeirão viveu em Salvador na primeira metade dos anos 1900. Foi presa após lutar com dois agentes civis que disseram que ela apresentava sinais de embriaguez — a mulher estava, na verdade, em trabalho de parto — e “andava rodopiando”. Rosa jogou para tentar escapar, mas foi levada e pariu na cela.
Idalina foi presa várias vezes nas décadas de 1910 e 20. Em uma delas, jogou na rua com um amiga (elas se desentenderam) e o guarda civil que foi separá-las acabou apanhando.
Francisca Albina dos Santos, a Chicão, também frequentou a cadeia. Certa vez bateu Pedro Celestino dos Santos, que era conhecido como Pedro Porreta. Ele invadiu sua casa atrás de outra mulher e surpreendeu Chicão em trajes íntimos. Ela partiu pra cima dele. O apelido vinha da estatura alta e do grande desenvolvimento físico. A descrição constava na ficha da delegacia, em 1935.
Mais preconceito — Nascida em Juazeiro da Bahia, a professora de educação física Joselita Pereira de Oliveira, Mestra Jo, tem 45 anos e é o que o livro da Paula classifica como mulher incorrigível. Ela começou a praticar capoeira aos 7 anos, sem o apoio da mãe. “Fui insistente em fazer com que minha mãe e todas as pessoas que não acreditavam enxergassem que aquilo era minha vontade e determinação,” conta.
Jo viajou para fora do Brasil pela primeira vez em 1997. Ela representava a capoeira nos Estados Unidos e se apresentou com o grupo Dance Brazil, um companhia estadunidense de espetáculos voltados à cultura brasileira. Conseguiu contrato com a Nike por um ano e meio e teve sua imagem divulgada durante uma semana nos telões da Broadway, na Times Square, em Nova York.
Mestra Jo diz que nunca foi barrada ou proibida de jogar capoeira, mas quando começou sentia falta de outras mulheres no esporte. “No começo, minhas referências eram os homens. Sempre vivi no meio deles naquela época”, explica Jo. Hoje em dia, ela dá aulas na Capoeira Brasil, uma academia com unidades em vários lugares do Brasil e em mais de 30 outros países.
Novos tempos — Para as mulheres, o cenário atual está diferente. “As contemporâneas são muitas”, afirma Mestra Jo, citando as mestras Sheila, Espaguete, Batatinha, Smurfette, Cigarra, Rufato, Bia, Cigana, Edna, Janja, Tisza, Mara, Brisa, Carol, Patrícia… E completa: “Que venham mais e mais referências, porque precisamos deste apoio e força feminina, uma dando suporte a outra a cada momento de nossa trajetória.”
Aos 21 anos, as gêmeas e empreendedoras Evellyn e Ellen Pereira dos Santos, estudantes de educação física e nutrição, respectivamente, representam uma nova geração. Naturais do Parque Brasilia, bairro de Guarulhos, na Grande São Paulo, elas começaram a treinar sério aos 10 anos com o próprio pai: Edson do Berimbau, o mestre Sata. A mãe das meninas, participa das rodas — e quando estava grávida treinava e jogava normalmente.
“Já me barraram de jogar, em um evento em São Paulo. Entrei em uma roda e um homem me tirou com menos de cinco segundos de jogo”, conta Ellen. “Talvez tenha sido porque eu era mulher, ou não tinha uma graduação muito alta. Fiquei constrangida e saí. Mas o contramestre organizador do evento me puxou para jogar com ele, tirando a pessoa que me tirou da roda. Fiquei muito feliz e agradecida.”
A irmã de Ellen afirma que há diferença de tratamento no jogo, no toque, no canto e até mesmo para dar aulas. “O que o homem faz é mais valorizado, por mais que a mulher faça bem”, diz Evellyn. “Vejo que as mulheres precisam diversas vezes lutar por espaço, quando vão jogar ficam pouco tempo na roda, já vem um homem querendo tirar no canto ou no toque. Esperam ansiosos por um erro e em aulas preferem contratar um homem do que uma mulher. Não é sempre e nem em todos os lugares, mas acontece. Vejo que com o passar do tempo tem melhorado.”
Em 2020, Evellyn e Ellen ficaram desempregadas e abriram um delivery para bancar a faculdade. Mesmo com o negócio para administrar, as duas seguem dedicadas à capoeira e não têm planos de parar
Para Evellyn, a capoeira é mais que um esporte. “Ela acaba presente em tudo que você faz. Para mim, é a arte de se expressar através de movimento, canto, toque e tudo que ela nos proporciona. Enquanto mulher, força feminina, a capoeira te permite poder de fala, conquistar direitos e ir sempre além. Vejo mulheres extremamente talentosas que encantam quando entram na roda,” conta.
Mais mulheres — Ellen ressalta que tem aumentado a quantidade de coletivos de capoeira a favor da diversidade no esporte, no Brasil e no mundo. Essas organizações dão voz às mulheres e incentivam os homens a valorizar a presença delas. “Indivíduos de diversos grupos buscam igualdade e empoderamento feminino, o que encoraja e inspira, mostrando que somos capazes, sim, de tocar o berimbau bem tocado, de jogar bem, dar uma boa aula e comandar uma roda”, diz a estudante.