Hora de repactuar com os carros a conta da mobilidade
“Cobrança por impactos negativos do carro é solução justa e inteligente de geração de recursos para o transporte sustentável.”
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24/11/2021
Quando alargamos a primeira avenida, não previmos que seria a tentativa inicial de muitas para garantir à frota crescente de carros o máximo de mobilidade e conforto. Hoje, sabemos que esse esforço é em vão: não tarda até que os congestionamentos retornem, em uma cidade com mais faixas para carros e menos espaço para as pessoas desfrutarem a vida com qualidade.
Em meio a crenças e práticas anacrônicas, o transporte público coletivo, um direito constitucional, sem o qual milhões de pessoas são privadas do acesso à cidade, atravessa, hoje, sua pior crise. Com o baque adicional da pandemia, corre o risco de colapsar em várias metrópoles.
O que a crise do ônibus tem a ver com o carro? Tudo. A frota brasileira de automóveis quase quadruplicou, nas duas últimas décadas. Somente entre 2013 e 2019, a demanda por ônibus caiu mais de 26%. Muitos dos passageiros perdidos pelo transporte coletivo foram atraídos pela promessa insustentável da mobilidade carrocêntrica. Resultado? Mais congestionamento, poluição, perdas econômicas e de vidas.
Toda a sociedade se prejudica quando migrar para o carro parece a escolha mais vantajosa. Acontece que ‘só parece‘. Os carros seriam bem menos atraentes como símbolos de autonomia e liberdade se os impactos negativos que têm sobre a vida nas cidades – e no planeta – entrassem na conta. IPVA, seguro, combustível, pneus: os custos individuais de dirigir dizem respeito à posse, ao uso e à manutenção de um bem privado. Quem paga pelos custos coletivos? Todos nós.
A Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP) estima que carros e motos são responsáveis por 85% dos custos do transporte urbano para a sociedade, somando gastos em infraestrutura e mortes e internações decorrentes de acidentes e da poluição. O transporte coletivo, por 15%. Não surpreende que usar o ônibus custe caro: os passageiros, 50% deles cativos por falta de alternativa, pagam, sozinhos, pelo bem que fazem à coletividade ao utilizar um transporte mais limpo, seguro e eficiente.
Na maioria das cidades brasileiras, o sistema é bancado pela tarifa, tornando impossível oferecer um serviço de qualidade em um cenário de queda de demanda. Desse jeito, a conta não fecha. Garantir transporte coletivo de qualidade e cidades mais inclusivas requer que se cobre pelos impactos negativos do uso do carro, gerando recursos para promover e renovar a mobilidade sustentável.
Extrair do problema a solução
É o que fazem cidades em todo o mundo. Bogotá, na Colômbia, mantém a tarifa do ônibus em patamares acessíveis por meio de um fundo alimentado pela taxação da gasolina. Londres gera R$ 1 bilhão ao ano para o transporte coletivo ao cobrar pelo acesso dos carros à zona central, e vai economizar outros bilhões ao longo dos anos com a redução de emissões e acidentes.
São Francisco (EUA) precifica o estacionamento em vias públicas de acordo com a demanda por vagas. Ir ao centro de transporte coletivo tornou-se mais barato do que ir de carro, e as receitas anuais para a mobilidade sustentável engordaram alguns milhões de dólares. Não é justo reservar espaço público valioso para a armazenagem gratuita de bens privados.
A nossa Lei da Mobilidade Urbana já prevê a cobrança pelo uso do carro como medida de equidade e sustentabilidade no transporte. As cidades devem pôr a lei em prática. É claro que não se recomenda substituir os incentivos ao carro por subsídios ao modelo atual de transporte coletivo. É preciso renovar o sistema, com contratos que promovam a qualidade do serviço. Mas desconheço cidade no mundo que garanta um transporte coletivo atrativo viabilizado apenas com a arrecadação tarifária.
Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião do Estadão
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