Conheça projetos que incentivam leitura nas periferias
Pesquisa Brasil que Lê diz que mulheres lideram mais de 70% das iniciativas
O hábito da leitura pode transformar realidades. É o que defendem projetos de incentivo à leitura localizados nas periferias brasileiras. Nessa reportagem, o Nós, Mulheres da Periferia conversa com três deles: a Gelateca Cultural Maria Betânia de Carvalho, que disponibiliza livros em geladeiras, a Biblioteca Comunitária Caminhos da Leitura, conhecida por ter ocupado durante uma década o espaço de um cemitério, e o coletivo Mulheres Negras na Biblioteca, atuante no incentivo a leitura de autoras negras.
A pesquisa Brasil que Lê, lançada em março de 2022 por uma parceria entre Instituto Itaú Cultural, Instituto Interdisciplinar de Leitura da PUC-Rio, Cátedra Unesco de Leitura PUC-Rio e J.Castilho Consultoria, identificou a ligação entre projetos de leitura e o desejo de transformação da condição social. O estudo mapeou iniciativas de promoção à leitura no país, e revelou que 74,08% dos responsáveis pelos projetos são mulheres. Além disso, 39,01% das iniciativas se mantêm apenas com recursos próprios.
Gelateca Cultural Maria Betânia de Carvalho — No bairro Jardim São Paulo, em Recife (PE), o projeto incentiva a leitura com a disponibilização de geladeiras customizadas e repletas de livros em espaços públicos, com a realização de um sarau mensal. Foi criado em 2018 pela população local “que entende a necessidade e a importância da leitura e da cultura como um dos principais meios de mudanças e propagação de justiça social”, diz Gal Araújo, umas das coordenadoras. O nome escolhido foi em homenagem a uma antiga moradora do bairro: Maria Betânia de Carvalho era professora e militante da educação.
Para produzir as gelatecas, os gestores do projeto pedem doações de livros e geladeiras velhas à própria comunidade. Além disso, fazem parcerias com grafiteiras e grafiteiros para pintá-las. Atualmente são três: uma em homenagem a Maria Betânia de Carvalho, outra em homenagem ao menino Miguel, que morreu ao cair de um prédio enquanto estava aos cuidados da patroa de sua mãe. A terceira faz referência a Dona Graça, que tinha uma barraca de frutas e verduras onde colocava também os livros em caixotes.
Mulher periférica, mãe solo, militante social e ativista, Gal escolher estar entre os livros não é fácil para a população de baixa renda. “A periferia tem que escolher entre comer e estudar. Eu tive que fazer essa escolha entre trabalhar para trazer o sustento para mim e minha filha, e estudar. Não sou formada em nada, sou formada na rua mesmo, hoje eu tenho o hábito de ler porque entendo que da leitura eu faço a revolução”.
Biblioteca Comunitária Caminhos da Leitura — Ela já funcionou em posto de saúde, cemitério e salão alugado. Em Parelheiros, zona sul de São Paulo, a Caminhos da Leitura atende os moradores há mais de uma década. A iniciativa foi criada em 2009 pelo Instituto Brasileiro de Estudo e Apoio Comunitário (Ibeac). Quem faz a gestão é o coletivo jovem Escritureiros.
No primeiro ano a Caminhos ficou em uma sala de uma Unidade Básica de Saúde (UBS) e depois mudou para a antiga casa do coveiro no Cemitério de Colônia, primeiro cemitério protestante no Brasil. O local inusitado foi bem aproveitado: os gestores realizavam anualmente o Sarau do Terror, com apresentações culturais, contação de histórias e outras atividades.
Em abril de 2021, a organização foi surpreendida por uma ordem de despejo. O imóvel seria demolido para dar lugar a novas lápides. Sidineia Chagas, uma das fundadoras, conta que conseguiram estender o prazo de saída para o fim de 2021 e nesse tempo pensaram em estratégias para que os livros “não ficassem encaixotados”. A solução encontrada foi a campanha Eu (A)guardo a Biblioteca Comunitária Caminhos da Leitura, em que moradores foram convidados a levar para casa partes do acervo até que a biblioteca encontrasse um novo endereço — uma salão alugado que não comporta todo o acervo e não está aberta ao público.
Diante dessa trajetória, o projeto ganhou uma homenagem no melhor formato possível: um livro. A obra juvenil Meia-Noite na Biblioteca, de Alonso Alvarez, é inspirada na Caminhos da Leitura e traz histórias com vivos e mortos numa biblioteca dentro de um cemitério.
Sidineia diz que vários projetos culturais e sociais em Parelheiros foram criados a partir das vivências na Caminhos. “A partir da biblioteca, foi possível entender nossas identidades; fazer com que outras pessoas reconhecessem suas histórias, suas ancestralidades; e saber da onde nós partimos e onde nós gostaríamos de chegar”, diz.
Mulheres Negras na Biblioteca — Incentivar a leitura de obras de autoras negras e reivindicar a inclusão de seus livros nas bibliotecas são os objetivos do projeto que, em 2021, lançou um programa de trocas. O processo é simples: acessar o acervo online, selecionar uma obra, informar qual livro dará em troca e aguardar o envio pelos Correios.
Essa “bibliotroca” foi inspirada no The Free Black Women’s Library, dos Estados Unidos. Carine Souza, produtora cultural, idealizadora e diretora do Mulheres Negras na Biblioteca, conheceu a iniciativa em uma reportagem publicada no Nós, Mulheres da Periferia. “Nosso projeto começa em 2016 num curso técnico de biblioteconomia, quando a gente — na primeira formação do coletivo — identificou que não havia obras de autoras negras na biblioteca da escola”, diz Carine. O grupo foi atrás de doações, catalogou as obras e as disponibilizaram no acervo. “Naquele momento a gente já entendeu que não bastava as obras estarem nas estantes, as pessoas precisavam saber que estavam ali.”
A estratégia de divulgação do coletivo está nos clubes de leitura, em bate-papos com escritoras, oficinas de poesia e rodas de conversa. Um exemplo é a Roda de Poemas: Antes de Nós, que reúne autoras veteranas e da nova geração. Os eventos costumam ocorrer em escolas, bibliotecas e outros espaços da cidade de São Paulo, mas com a pandemia passaram a ser feitos também de modo virtual.
“Quantas autoras negras você já leu?” é uma pergunta que o coletivo sempre faz ao público nos encontros. Por vezes, as respostas se concentram em uma ou duas autoras. Carine lembra de uma ação promovida com alunos Educação de Jovens e Adultos (EJA), em que um homem falou que nunca havia lido um livro na vida, e que aquele que ganhou do projeto seria o primeiro. “Pra gente, é missão cumprida, saber que a gente não só apresentou uma autora negra, a gente apresentou a literatura”, diz Carine.
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