Escritor congolês Etshindo Elando fala de suas origens e da vida no Brasil
Poeta e especialista em tecnologia, ele mora no País há mais de 30 anos e começou a escrever na infância, para lidar com a tristeza
Filho de militar e de uma mãe que foi embora misteriosamente quando ele ainda era criança, só aos 9 anos o escritor congolês Etshindo Elando conseguiu estabelecer uma identificação de afeto como pai — ele compartilhou seus sentimentos por meio da poesia. “Comecei a escrever coisas bonitas para que meu pai lesse, porque sentia falta da minha mãe, para que ela voltasse. Mostrando que a mãe, o filho e o pai é uma coisa boa”, diz Etshindo. “Mas isso tudo não adiantou.”O imigrante vive no Brasil há mais de trinta anos; está com 61 agora.
MINIBIOGRAFIA DO ESCRITOR CONGOLÊS ETSHINDO ELANDO
Etshindo Elando Ernesto Tomás nasceu na República democrática do Congo (antigo Zaïre) e vive no Brasil há mais de trinta anos. Formou-se em matemática pela Universidade de Kinshasa, por motivos políticos precisou fugir para Angola e depois obteve asilo na Suíça. Já foi professor de matemática e biologia marítima e tem formação universitária em informática e tecnologia da informação
A mãe de Etshindo também está morando no Brasil, mas até hoje o filho não sabe por que ela foi embora.
As versões dela e do pai, já falecido, são diferentes. Cartas enviadas a cada seis meses eram o único elo que os aproximava. Desde a partida da mãe, ele não para de escrever.
“Hoje, escrevo por naturalidade. Às vezes tô sentado, vem uma ideia, começo a escrever. Escrevo de tudo, não só poesia. Sou observador. Não há momento em que eu não pense. Escrever pra mim é registrar alguma coisa que passa na minha cabeça”, relata Etshindo, que em 2018 publicou o livro Brincando de Poeta, pela editora francesa Edilivre. No Brasil, pretende lançar outro, também de poesia.
A origem congolesa — Etshindo Elando cresceu cercado por mulheres. As sete esposas de seu pai, que chamava de mães, lhe ampararam enquanto o menino sentia falta daquela que foi embora. Todos viviam juntos em uma espécie de vila com um quintal em comum na cidade de Kinshasa, capital da República Democrática do Congo. Cada esposa tinha a própria casa. Ao todo, eram 26 filhos. Motoristas e empregados domésticos e suas famílias, primos e sobrinhos eram abrigados no mesmo terreno.
Exigente e austero, o pai de Etshindo era contador das Forças Armadas. Fazia parte do governo ditatorial de Mobutu Sese Seko (1965-1997). O militar era filho do chefe da tribo Tetela, da região de Kasaï oriental. Deixou o vilarejo para ir morar em Kinshasa, onde fez faculdade. Desde pequeno teve acesso aos estudos, segundo Etshindo, uma influência da colonização belga. “Ele nunca bateu em nenhum filho, nem nas esposas. Mas agredia só de olhar. Só de você olhar já ficava com temor, porque era um olhar bem rude, bem, bem, bem firme. Você já sentia ali que ‘não, alguma coisa tá errado’. Era uma agressão moral”, diz Etshindo. Numa família numerosa, a ordem imposta unia todos. No ambiente doméstico havia leis.
A comida era preparada todos os dias por uma das mulheres. À mesa, o pai sentava-se primeiro, depois os filhos e, por último, as esposas. Pratos, copos e talheres ficam dispostos conforme a etiqueta. Terminada a refeição, todos os filhos agradeciam a esposa que preparou: “Merci, mama. Merci, mama”, falado em francês, idioma do país após a colonização. O pai era o primeiro a sair. Depois os filhos e as mulheres. Aquela que cozinhou no dia recolhia os pratos da mesa para os empregados darem fim ao serviço. A vestimenta também fazia parte do rigor. O uso da gravata era obrigatório. O cuidado com a aparência é uma herança que Etshindo cultiva até hoje.
Revolta — Ethsindo nunca aceitou a participação do pai no governo do ditador Mobutu e o abismo econômico entre sua família e a maior parte da população congolesa. “Apesar de ter uma vida privilegiada, vivia uma luta interna. A maioria dos meus amigos eram de outras classes sociais”, diz.
Quando criança, uma situação em especial o chocou — mas outras surgiriam ao longo dos anos. “Um amigo meu negou a mãe”, lembra. “A gente tava brincando, ela veio até a minha casa: ‘Eu vim pegar meu filho’. O menino respondeu: ‘Não, você não é a minha mãe’, por ter vergonha dela; pela posição que a gente tinha em relação a ele.”
Prisão e tortura — Etshindo conta que leva nos braços marcas de tortura. Aos 23 anos foi um dos vários presos em um protesto de oposição ao regime. “Meu amigo foi morto a tiros. Ele fazia o último ano de arquitetura”, conta. Uma revolta estudantil na Universidade de Kinshasa foi violentamente reprimida pelo governo antidemocrático de Mobutu. Era a instituição onde o congolês havia se formado em matemática.
“A ditadura é isso: você não tem direito. O governo coloca uma lei que o favorece, inclusive financeiramente, desfavorecendo o povo, e você não pode reclamar. Você não pode marchar contra isso. Você não pode falar contra o governo. Você não pode falar contra a política. Absolutamente, você não pode falar nada”, relata.
Exílio — Depois de uma semana preso “à noite chegaram os militares que me tiraram de lá, me levaram direto pra casa. De casa saí direto pro aeroporto. Já tava tudo pronto: a passagem, o passaporte. O visto pra Angola”. Etshindo conseguiu sair do país por ser filho de um militar. “Acho que ninguém sabia quem eu era. Poderia ter colocado o meu pai em risco. O filho de um oficial militar não podia participar de manifestações contra o governo.”
Nos planos do pai além da ida para Angola estava o asilo político na Suíça. “Lá eu tinha de tudo. Como exilado político, o governo me pagava um dinheiro, mas eu não podia trabalhar, não tinha direito”, relata. Descontente com a situação, escutou de alguns congoleses que no Brasil poderia, além de receber asilo político, trabalhar.
Passados cinco anos na Suíça, em 1987 Etshindo desembarcou no Rio de Janeiro. Mas ele não esperava que a língua portuguesa se tornasse um grande entrave: “Mesmo estando em Angola, não aprendi direito o português. Sempre foi pra mim uma língua complicada. Acho que é a mais difícil do mundo.” Ele até tentou voltar para a Suíça, mas por problemas de documentação a viagem não deu certo. Acabou ficando no Brasil.
‘Pátria amada’ — Morador da Ilha do Governador, zona norte do Rio de Janeiro, o imigrante conta de sua admiração pelo País. “O Brasil me acolheu . Tudo o que eu tenho é por causa do Brasil. Até os meus filhos eu digo que o País me deu.”
No Brasil, Etshindo fez graduações e pós-graduações na área da informática. Conseguiu emprego e hoje tem estabilidade. Aos conterrâneos recém-chegados, ele aconselha agarrar as oportunidades de estudo e formação. “Até quem tem mais idade, estuda. A bagagem intelectual ninguém tira de você”, afirma.
Mas o autor reconhece as dificuldades enfrentadas por congoleses no País que o acolheu. Uma das principais barreiras é a da documentação. “Muitos têm nível superior, mas quando chegam aqui têm dificuldade com a língua, dificuldade de traduzir os papéis. Você precisa pagar, e é muito caro. O CPF demora muito tempo para sair e a carteira de trabalho também.” Tudo isso distancia boa parte dos imigrantes do trabalho formal e da moradia digna.
Ao lembrar-se do assassinato de Moïse Kabagambe, morto brutalmente no dia 24 de janeiro deste ano, a voz fica embargada pelo choro. “Era um jovem que fugiu por não ter oportunidade no Congo. A forma como ele foi morto é chocante. Isso me dói muito. Eu participei ativamente da marcha pra ele. Tava organizando pelos grupos do WhatsApp.”
Depois de três décadas no Brasil, o congolês vê melhorias em relação à questão racial no País, porém conclui: “A ferida vai, mas a cicatriz fica”. Como faz com seus conterrâneos que aqui chegam, também orienta o povo brasileiro. Fala que é preciso conhecer a si mesmo, a sua origem.
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