É preciso ‘destravar’ a eletrificação dos ônibus urbanos de São Paulo. Três anos depois de a Prefeitura de São Paulo prometer que o sistema de transporte público da cidade teria, até o fim de 2024, 2.600 ônibus elétricos, o equivalente a 20% da frota, a realidade da eletrificação no setor está muito aquém do planejado.
Segundo a SPTrans, orgão que faz a gestão da rede de transporte de passageiros do município, São Paulo dispõe, atualmente, de 496 ônibus elétricos – 295 movidos a bateria e 201 trólebus –, ou seja, apenas 3,7% dos 13.277 veículos em operação.
O programa tem sofrido contratempos. O mais recente deles foi a votação da Câmara Municipal do Projeto de Lei 825, em dezembro de 2024, autorizando que metade da frota das empresas seja movida a diesel (veja texto abaixo).
Afinal, por que a transição energética do transporte paulistano não consegue decolar, uma vez que há a seu favor uma lei publicada em 2018?
Para Flamínio Fichmann, diretor de mobilidade da Associação Brasileiro do Veículo Elétrico (ABVE), faltou atuação mais incisiva da prefeitura. “Ela deveria apresentar propostas assertivas e custos compatíveis com o mercado”, diz. “A Enel encaminhou para a SPTrans um projeto de implantação de infraestrutura de recarga nas garagens das operadoras, que deveria ser posto em contrato e executado, sem perda de tempo.”
Ele diz que o gargalo não está na produção dos ônibus, pois as indústrias nacional e internacional possuem know how suficiente para fornecer os ônibus nos prazos combinados.
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A cidade de São Paulo, segundo Fichmann, deveria seguir o exemplo das capitais Bogotá (Colômbia) e Santiago (Chile), onde a expansão da infraestrutura e a aquisição de ônibus caminham juntas. E defende um trabalho descentralizado, a fim de não sobrecarregar as garagens.
“Quando são recolhidos, os ônibus passam por manutenção, lavagem e recarga. O tempo é curto para tudo isso e pode haver sobrepico de energia até mesmo de madrugada”, explica.
O diretor da ABVE acrescenta. “Há outras formas de executar a recarga, como instalar hubs nos terminais urbanos, obras que levariam de 45 a 90 dias, abrindo a possibilidade de fazer a chamada recarga de oportunidade nos intervalos das viagens”.
Fichmann critica o Projeto de Lei 825 que, a seu ver, foi criado para salvaguardar os interesses das concessionárias. “Esse é o desejo dos empresários, não da população. A lei é ruim, permissiva e não agrega nada de bom aos usuários e à indústria.”
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No entender de Cadu Souza, CEO da TEVX Motors Group, representante da fabricante chinesa Higer Bus no Pais, o envolvimento de poder público, concessionária de energia, operadores privados e empresas de solução de infraestrutura desde o início do projeto seria a fórmula ideal para construir soluções de implementação da eletromobilidade sustentável na cidade de São Paulo.
Ele também cita os cases de sucesso de Santiago e Bogotá: “O mais prudente é importar das duas capitais as melhores práticas para a eletrificação. Lá, a iniciativa privada participou da viabilização de infraestruturas, que supre os ônibus elétricos e outros segmentos, como táxis, motoristas de aplicativo e ambulâncias”, revela. “Isso serve de incentivo para viabilizar economicamente o programa.”
De acordo com Sergio Avelleda, sócio-fundador da Urucuia, empresa especializada em mobilidade urbana, a prefeitura de São Paulo desenvolveu uma solução financeira inteligente e que poderá servir de referência para outras cidades do Brasil.
O município buscou parcerias e financiamento de instituições nacionais e internacionais, garantindo recursos às empresas para o programa de eletrificação. “No entanto, a descarbonização do transporte urbano enfrenta lentidão devido aos complexos desafios de infraestrutura, que não foram previstos anteriormente”, destaca.
“A rede de alta tensão não está próxima da maioria das garagens. Ela não é só um fio sustentado por um poste. Precisa de infraestrurura específica, geralmente subterrânea. Isso encarece e atrasa a instalação”, pondera.
Segundo o especialista, o investimento para a infraestrutura nas garagens dependerá da quantidade de ônibus elétricos de cada concessionária. Quanto mais veículos, mais parruda a instalação. “A partir de um certo número de ônibus, ela deve ser de alta tensão e esse é o grande desafio”, salienta.
Avelleda aponta, também, um erro da regulação no fornecimento de energia. A Enel é a concessionária responsável pela distribuição de energia de baixa, média e alta tensões em São Paulo.
“Um consumidor solicitante da rede de alta tensão terá de arcar sozinho toda a infraestrutura. Em uma conexão subterrânea que vai até a porta da garagem, qualquer outro usuário que estiver no meio do caminho poderá usá-la, sem gastar nada”.
A meta de descarbonizar a frota de ônibus urbanos de São Paulo é antigo e passível de reviravoltas. Os debates começaram em 2009, quando a Prefeitura, atendendo a Lei de Mudanças Climáticas fixou um prazo até 2018 para a conversão total dos ônibus a diesel para sustentáveis.
A regra não foi cumprida e passou por uma emenda, que se transformou na Lei 16.802/2018, que definiu o prazo da redução de 50% das emissões em 2028 e 100% até 2038.
Com a medida, as concessionárias não poderiam mais comprar veículos movidos a diesel, mas somente aqueles com tecnologias que atendessem o cronograma de erradicação de emissão de poluentes.
Em dezembro de 2024, porém, um novo capítulo ameaçava desacelerar novamente o programa. A Câmara Municipal de São Paulo aprovou o Projeto de Lei 825/2024 – à espera da sanção ou não do prefeito Ricardo Nunes (MDB) – permitindo que até 50% da frota das empresas continue recebendo diesel.
As concessionárias de ônibus deverão apresentar à Enel e à Comgas projetos com as suas necessidades para o carregamento de baterias ou gás nos locais a serem indicados pelo município de São Paulo.
A ABVE classificou o projeto de lei como “retrocesso”, que compromete o programa de transição dos ônibus. Segundo a ABVE, a justificativa de que a indústria não poderia entregar os veículos nos prazos previstos não se sustenta.