‘Bicicleta representa liberdade pessoal e social’, diz embaixadora do ciclismo nos países baixos
Em entrevista exclusiva ao Mobilidade Estadão, Shelley Bontje, gerente de projetos da Dutch Cycling Embassy, que está no Brasil para participar dio Construção Summit 2025, compartilha sua experiência e avalia ações que poderiam ser testadas por aqui

Nascida na cidade de Haia, na Holanda, ela se acostumou a ver a bicicleta fazendo parte da paisagem urbana e do dia a dia de pessoas de diferentes idades e classes sociais. Mas, ao longo da sua vida, o ciclismo foi assumindo um papel ainda mais importante: acabou fazendo parte de sua formação acadêmica e virando objeto de trabalho.
Leia também: Prêmio Mobilidade 2026. Ajude a escolher os melhores carros, as melhores motos e os melhores serviços de mobilidade. Votação aberta até o dia 26/9
Shelley Bontje, 30 anos, é considerada a ‘embaixadora do ciclismo nos países baixos’. Ela é gerente de projetos da Dutch Cycling Embassy (DCE), uma organização sem fins lucrativos apoiada por todos os setores que fizeram da Holanda o país número 1 em ciclismo no mundo. Ela também é professora, com formação em geografia humana, planejamento urbano, além de mestrado em estudos de meio ambiente e sociedade e em planejamento espacial e política ambiental.
Como ela conta, a experiência holandesa com o modal é muito avançada: quase um terço da população dos países baixos usa a bicicleta em seus deslocamentos diários e a Holanda possui 1,3 bike por habitante. Isso mesmo: no país há mais bicicletas que pessoas.
Leia também: Bike também é cultura: teatros e museus precisam abraçar essa ideia
Shelley é um dos destaques da programação do Rio Construção Summit 2025, evento que acontece entre amanhã, quinta-feira (25), e sexta (26) no Píer Mauá, no Rio de Janeiro. No fórum, ela compartilha sua experiência na oficina ‘Mobilidade Ativa: Como Projetar Ciclovias Funcionais e Integradas para as Cidades’, e da mesa-redonda ‘Mobilidade Ativa e o Desenvolvimento das Cidades: O Caso Holandês’, dia 25. Em entrevista exclusiva ao Mobilidade Estadão, Shelley avalia a infraestrutura cicloviária brasileira, além sugerir medidas que poderiam ser adotadas por aqui. Acompanhe a seguir.

Como a bicicleta se tornou parte da sua vida e rotina?
Crescendo na Holanda, o ciclismo nunca me pareceu algo incomum: era e ainda é – simplesmente parte da vida cotidiana. Quando criança, comecei brincando em uma bicicleta sem pedais, depois passei para as bikes infantis pequenas fornecidas no pátio da escola. A partir daí, o ciclismo se tornou a maneira de encontrar amigos, brincar ao ar livre e, eventualmente, viajar de forma independente já no ensino médio.
Mas não me considero um ativista. Para mim, a bicicleta sempre foi uma parte natural e prática da vida. E foi somente por meio de intercâmbios internacionais que percebi que a cultura ciclística que tanto valorizamos na Holanda não existe em todos os lugares.
Acho triste que tantas pessoas ao redor do mundo não possam desfrutar do ciclismo com a mesma liberdade e segurança que nós [holandeses]. Acredito que isso é algo que pode e deve mudar – globalmente – para que mais pessoas possam experimentar um estilo de vida mais feliz, confortável, prazeroso, saudável e ecologicamente correto.
Quais benefícios podem ser destacados em uma cidade ou país que coloca a mobilidade ativa no centro da sociedade?
Para mim, o ciclismo representa liberdade, tanto no nível pessoal quanto social. Particularmente, significa ter a flexibilidade para decidir quando e para onde viajar, sem depender de terceiros ou ser limitado por restrições financeiras. Mas também há uma liberdade mais ampla que acompanha o ciclismo: a capacidade de as pessoas fazerem escolhas acessíveis, seguras e ativas diariamente em suas vidas.
O que é particularmente poderoso é que o ciclismo apoia o desenvolvimento pessoal e a independência, quase sem impacto negativo sobre outros usuários e sobre o espaço público. Nesse sentido, ele possibilita tanto o crescimento individual quanto uma sociedade mais habitável e inclusiva.
Holanda e Brasil são países com realidades sociais, geográficas e de infraestrutura muito diferentes. Há elementos que poderiam ser implementados aqui?
Uma das lições mais valiosas da experiência holandesa é a maneira como os projetistas criam infraestrutura segura e confortável de forma consistente em todo o país – desde cruzamentos e rotatórias, passando pelos níveis de meio-fio e pelos materiais que usamos em termos de pavimentação. Essa abordagem pode ser adaptada ao Brasil desde que haja interesse em garantir maior segurança para todos os usuários das vias.
Outro elemento chave é a forte integração do ciclismo e da caminhada com o transporte público. Na Holanda, mais da metade das pessoas que viajam de trem – o que, em escala, pode ser comparado, por exemplo, à rede metroviária de São Paulo – chegam de bicicleta até a estação de trem.
Acredito que o fortalecimento dessas conexões será um verdadeiro divisor de águas para as cidades brasileiras. Especialmente no que diz respeito à redução da dependência do automóvel particular, bem como ao alívio da pressão nas vias nos horários de pico ou engarrafamentos. Isso proporciona, também, oportunidades de desenvolvimento econômico e ao aumento da qualidade de vida dos cidadãos.

Do ponto de vista das leis de trânsito, o que se destaca na cultura holandesa em relação à mobilidade cicloviária?
O destaque é a política holandesa de segurança sustentável. A ideia é simples, mas poderosa: todos são humanos e podem cometer erros, mas esses erros nunca devem custar uma vida. Nosso sistema de trânsito/espaço público é, portanto, projetado para proteger primeiro os usuários mais vulneráveis das vias, garantindo que o ciclismo e a caminhada permaneçam seguros e acessíveis a todos. Dessa forma, mesmo que um motorista de carro ou caminhão cometa um erro, aqueles que caminham ou pedalam estarão protegidos por conta da infraestrutura adequada e dos limites de velocidade.
Qual sua avaliação sobre a infraestrutura cicloviária na capital paulista, considerada uma das mais desenvolvidas do Brasil? Ela é funcional?
Tenho uma opinião positiva sobre a infraestrutura e gostei muito de pedalar em São Paulo. Dito isso, é preciso acrescentar que tive a sorte de ser acompanhada por um ciclista local fantástico e que conhecia bem a cidade e pôde nos guiar pelos melhores percursos. Sem esse conhecimento local, a orientação teria sido muito mais desafiadora.
Também pedalei no Parque Ibirapuera e foi uma experiência particularmente agradável – ali é possível ver como as pessoas se deslocam até lá especificamente para desfrutar de um passeio recreativo e confortável.
Ao mesmo tempo, ainda há um enorme potencial para desenvolver e melhorar a infraestrutura cicloviária de São Paulo. Com melhor conectividade, maior conforto e navegação mais clara, o ciclismo pode se tornar uma opção ainda mais prática e atraente e, principalmente, mais inclusiva para muitos outros moradores.
O que o Brasil precisa avançar em termos de mobilidade ativa, especialmente para ciclistas?
Creio ser necesário haver indicadores de decisão ousados, com uma visão clara para o futuro – que priorize a qualidade de vida das cidades brasileiras e o bem-estar de seus cidadãos –, juntamente com a capacidade de traduzir essa visão em políticas, com planos de ação e responsabilidade por sua implementação.
Paralelamente a isso, um senso mais forte de consciência ambiental é essencial. Juntos, esses elementos podem impulsionar o tipo de mudança transformadora que pode tornar o ciclismo uma parte central, sustentável e atraente da vida cotidiana de muitas pessoas.
Qual é o número estimado de bicicletas circulando na Holanda? Há alguma comparação com outros locais?
Na Holanda, há, na verdade, mais bicicletas do que pessoas — cerca de 23 a 24 milhões de bicicletas, em comparação com uma população de aproximadamente 18 milhões de habitantes. No país há aproximadamente 1,3 bicicleta por habitante. Em outras palavras, em média, cada pessoa possui mais de uma bicicleta — uma indicação clara de quão profundamente o ciclismo está enraizado na vida cotidiana.
Ao mesmo tempo, a família média na Holanda possui um carro. Isso torna a experiência holandesa um excelente exemplo de como o ciclismo e o uso do carro particular podem coexistir, apoiados também pelo transporte público.
A visão predominante no país é que todos os cidadãos devem ter a liberdade de escolher como desejam se deslocar – e se sentir confortáveis fazendo isso — dependendo de fatores como a rota, o horário do dia ou o clima.
Assim, o governo não prioriza um meio de transporte em detrimento de outro. Tanto o ciclismo quanto o uso de carro particular são comuns, mas a forma como os espaços públicos são projetados oferece às pessoas a opção de se deslocarem de forma saudável, ativa, segura, confortável e agradável. Isso se aplica tanto a quem caminha quanto a quem pedala.
Amsterdã, nossa capital, é uma das cidades ciclísticas mais emblemáticas do mundo, mas o interessante é que também existem fortes culturas ciclísticas em outros lugares. A China, assim como o Japão, por exemplo, tem uma tradição ciclística muito rica e bem desenvolvida, embora com contextos históricos muito diferentes em comparação com a Holanda.
Qual a porcentagem de pessoas que usam bicicletas como meio de transporte na comparação com lazer?
Na Holanda, entre 25% e 27% das pessoas usam bicicleta para o deslocamento diário. Pesquisas recentes confirmaram que o ciclismo representa pouco menos de um terço de todos os deslocamentos, embora isso varie de acordo com a região e a cidade. Em cidades como Amsterdã e Utrecht, a proporção de pessoas que vão de bicicleta para o trabalho é ainda maior do que a média nacional.
Quando se trata de ciclismo recreativo, aproximadamente 70% dos adultos holandeses (com 16 anos ou mais) pedalam por lazer ou recreação. E cerca de um terço deles faz passeios recreativos regulares de bicicleta, sendo as principais motivações o relaxamento (46%), o desejo de passar tempo ao ar livre (43%) e os benefícios para a saúde (32%).
Leia também: Sistema de bicicletas compartilhadas atinge 35 milhões de deslocamentos no primeiro semestre do ano
Quer uma navegação personalizada?
Cadastre-se aqui
0 Comentários