‘Fui atropelado’: como funcionam processos judiciais de atropelamentos com morte no Brasil
Há diferenças na condução do processo em caso de morte e a depender dos veículos envolvidos

Diariamente a população do Estado de São Paulo recebe notícias envolvendo atropelamentos. O caótico trânsito já vitimou 1.904 pessoas somente em 2025 (de janeiro a abril) no Estado. Dessas, 402 eram pedestres, 136 ciclistas, 821 motociclistas e 401 ocupantes de automóveis, segundo dados do InfoSiga. Alguns atropelamentos ganham espaço na esfera pública, como o caso das amigas de São Caetano, que morreram após serem atropeladas por um carro na faixa de pedestres em abril deste ano.
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O contexto desse atropelamento gerou questionamentos quanto ao andamento de um processo. O motorista dirigia acima da velocidade permitida na via. Por outro lado, o sinal para pedestres estava vermelho. Mesmo assim, as duas atravessaram a rua. É inegável alguma responsabilização do condutor, mas as vítimas também participaram da fatalidade.
Para entender como os processos judiciais em caso de atropelamentos ocorrem em São Paulo, a reportagem do Mobilidade Estadão entrevistou o promotor de Justiça da promotoria de Habitação e Urbanismo Arthur Antonio Tavares e o advogado e presidente da Comissão de Trânsito da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP), Ademir Santos.
Como funcionam os processos judiciais no caso de atropelamentos?
Para analisar os possíveis andamentos de um processo judicial em caso de atropelamento seguido de morte, é preciso entender as quatro situações possíveis.
- Dolo direto: quando há intenção/vontade de matar (bastante raro na esfera do trânsito)
- Dolo eventual: quando o condutor assume o risco de matar ao cometer atos imprudentes
- Culposo: quando não há intenção de matar apesar de haver uma imprudência de menor gravidade
- Culpa exclusiva da vítima: quando a atitude da vítima impede que o condutor evite aquele acidente
Na esfera criminal, quando um juiz entende que o caso se enquadra em dolo direto ou eventual, o caso vai para o júri popular. Dessa forma, uma comissão de cidadãos comuns vai decidir se aquele réu é culpado ou não daquele acidente.
Já no caso de um homicídio culposo, em que o condutor agiu com culpa, mas sem intenção, o caso pode não chegar ao júri. Porém, o processo chega à vara criminal. A única situação em que um atropelamento seguido de morte pode desviar desse caminho é quando o juiz entende que a culpa foi exclusiva da vítima. Ou seja, qualquer pessoa no local do condutor teria agido da mesma forma, pois não houve imprudência por parte desse indivíduo.
Justiça cível e criminal
No Código de Trânsito Brasileiro (CTB), o entendimento dá o tom dos processos: a prioridade é segurança. Portanto, é obrigação de todos agiram com prudência, colocando a manutenção da vida em primeiro lugar.
Ao passar pela esfera criminal, o caso pode seguir ou já estar em andamento no aspecto Cível. Normalmente é nesse estágio que as multas e indenizações são definidas. Enquanto a Justiça criminal entende se houve crime, a Cível analisa o contexto para determinar se haverá uma responsabilização além da penal.
Embora o juiz criminal possa determinar um valor de indenização, é mais comum que isso ocorra na outra esfera. Quando o caso vem da área criminal já definido como uma situação que não envolveu crime, o processo cível costuma seguir o mesmo entendimento.
Porém, o promotor Tavares explica que normalmente não há uma definição tão objetiva, isso permite que o juiz cível analise os contextos com mais detalhamento para definir um valor de indenização. Na esfera criminal existem apenas duas opções: absolvição ou culpabilização. No cível, as oportunidades são maiores.
“Às vezes, nas cidades muito pequenas é o mesmo juízo”, ele conta. “Tem família de vítima que prefere esperar a decisão da criminal para só depois entrar com uma ação cível, para ter certeza que vai ganhar”, contextualiza o promotor.
Quem é responsável pelo acidente?
No CTB, todos devem prezar pela segurança. Além disso, Santos ressalta que isso supera a sinalização. Por exemplo, em uma via com velocidade máxima permitida de 60 km/h, mas chove muito, é obrigação do condutor ir mais devagar. O mesmo ocorre para os pedestres.
Apesar da lei dar preferência na passagem, isso só é válido em locais em que não há sinalização. Se tem sinalização, o pedestre deve cumprir.
Portanto, esses processos costumam envolver análise de contexto e perícias. Se o motorista dirigia com atenção, mas pegou no celular e causou o acidente, mas a vítima atravessou fora da faixa, mesmo estando perto de uma, a culpa é concorrente. “A gente fala que ela quebrou um dever, objetivo de cuidado”, explica o promotor. Isso porque o motorista não teve intenção, mas foi imprudente, o mesmo ocorre com a vítima.
Entretanto, essa situação não isola a participação do condutor, mas pode amenizar a pena e a indenização. Por outro lado, caso esse mesmo motorista acumule muitas multas por dirigir enquanto manuseia o celular, pode agravar a pena. Entretanto, não deixa de ser um caso culposo e vai para o eventual (quando se assume o risco).
“Na hora da pena, o juiz pode olhar esse comportamento equivocado da vítima e atenuar a pena do réu”, afirma o promotor. Quando esses casos vão a júri popular, o processo ganha uma outra camada, que é a comoção pública.
Esses jurados não têm a técnica jurídica, julgam pelo entendimento pessoal. Portanto, a performance da defesa e acusação será definitiva.
Os crimes de trânsito que envolvem homicídios costumam ser julgados a partir do CTB. Entretanto, o advogado traz a possibilidade quando há intenção de matar (dolo direto). “Em tese, ninguém vai pressupor que uma pessoa vai pegar um veículo e sair para matar alguém. E, se isso acontecer, ela não entra no crime de trânsito, ela entra no homicídio do Código Penal, com a intenção de matar alguém”, afirma.
A dosimetria das penas nos processos judiciais de atropelamento
Um dos agravantes de um processo, seja no âmbito do trânsito ou não, está na motivação, que pode ser fútil. “Homicídio por motivo fútil seria todo aquele que não tem uma justificativa, então a reprobabilidade desse homicídio é um pouco maior”, explica o promotor.
Portanto, é um aspecto extremamente relativo. Quando um juiz leva para o júri um caso com o agravante de motivo fútil, o advogado de defesa pode recorrer para que essa qualificadora não entre no processo.
Isso ocorre, pois cada agravante pode dobrar a pena. “Se um homicídio simples daria 6 anos, daria até um regime semi-aberto, e você joga 12 anos, já é um regime fechado”, contextualiza o promotor.
Também entra em conta a culpa concorrente, ou seja, quando a vítima também tem responsabilidade. Isso pode amenizar a pena do condutor e até reduzir a indenização. Um juiz pode reduzir em metade se entender que a vítima tem culpa também.
A vítima pode pagar indenização em processos judiciais de atropelamento?
Nos casos em que a culpa é exclusivamente da vítima, é difícil que ela pague alguma multa. Porém, isso não é uma definição jurídica e sim contextual. De acordo com o advogado Ademir Santos, quando há um acidente de responsabilidade de uma vítima, o condutor raramente vai processar e pedir indenização pelos danos. “As pessoas acabam deixando isso pra lá”, conta ele.
Entretanto, se a legislação fosse seguida a sério e houvesse fiscalização, a vítima teria de indenizar o poder público ou o motorista pelos danos. Porém, isso não ocorre ou não tem previsão de ocorrer.
Conheça o Código de Trânsito Brasileiro
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