O livro Senti na Pele (Ed. Malê, 2017), do jornalista e ator Ernesto Xavier, apresenta relatos de pessoas negras vítimas de racismo. As histórias foram contadas em uma página no Facebook criada para que denunciar os ataques. Nesta entrevista ao Expresso na Perifa, Ernesto analisa o que mudou no debate público desde a publicação da página e do livro, fala sobre os haters e conta que já foi parado “muito mais de dez vezes” pela Polícia Militar. O autor explica, ainda, de que jeito a camisa do Fluminense, seu time de coração, ajuda a se proteger das abordagens.
EXPRESSO NA PERIFA — O relatório Elemento Suspeito, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec), mostra que pessoas negras são mais abordadas em todas as situações e que muitos acham que só a população negra, pobre e da periferia é parada. O que você pode dizer sobre isso, a partir do Senti na Pele e da sua própria experiência?
ERNESTO XAVIER — As pessoas acham que as abordagens costumam ocorrer em favelas, onde a presença militar é mais forte. Nunca morei numa favela e já fui abordado muito mais de 10 vezes. Sempre circulei bastante pela cidade do Rio de Janeiro e esse deslocamento sempre foi muito perigoso pra mim, até porque uma pessoa negra retinta como eu é facilmente identificada e acaba sendo mais parada por agentes de segurança pública em relação às pessoas negras de pele mais clara, independentemente da classe econômica.
Lembro de uma situação na adolescência: eu estava dirigindo o carro da minha mãe, um automóvel grande, semelhante à uma picape. Na época, minha namorada, uma adolescente branca, estava no banco do carona. Nesse dia fomos parados na blitz da Polícia Militar e o policial, com a arma apontada, quando jogou a lanterna e viu uma mulher branca, nos liberou. Ela ficou chocada, pois literalmente tinha sido meu escudo. Isso aconteceu inúmeras vezes. Dez vezes foi pouco pra mim.
Nesse dia fomos parados na blitz da Polícia Militar. O policial se deslocou até o carro com a arma apontada. Quando ele jogou a lanterna e viu uma mulher branca, nos liberou imediatamente. Ela ficou chocada, pois literalmente tinha sido meu escudo
Você continua sendo parado em blitz? Como costuma agir?
Hoje estou com 37 anos e há alguns não passo por nada. Mas entre os 20 e 30 era muito complicado. Eu era um jovem negro magrinho e com cara de mais novo dirigindo um carro novo pra cima e pra baixo. Morava num bairro mais afastado, então me deslocava bastante e as abordagens normalmente aconteciam em blitz da Polícia Militar.
Teve uma vez que foi engraçado. Eu realizava o mesmo trajeto todas as noites quando fazia teatro na Lagoa Rodrigo de Freitas, na zona sul do Rio, e voltava para o Recreio, na zona oeste, onde morava. No retorno havia uma blitz que vira e mexe estava sempre no mesmo lugar. E os caras já tinham parado meu carro algumas vezes. Numa dessas eu estava passando e o policial me reconheceu e me liberou falando: “Ah é você. Vai, vai, vai! Pode ir!”
E aí o que acontece, eu criei um macete para me defender das abordagens. Desde a minha segunda carteira de motorista eu faço a foto com camisa do Fluminense, meu time de coração. Eu faço isso conscientemente, pois o futebol causa simpatia. Quando os agentes verificam minha habilitação, surge uma conexão imediata. Ou o policial vai me saudar por também ser tricolor ou vai me zoar caso torça para outro time. Isso aconteceu em algumas abordagens e me ajudou a conseguir ser liberado logo. Vamos criando essas estratégias. A camisa do meu time me protegeu muitas vezes das abordagens policiais.
“O futebol causa simpatia. Quando sou parado pela polícia e os agentes verificam minha habilitação, surge uma conexão imediata. Ou o policial vai me saudar por também ser tricolor ou vai me zoar caso torça para outro time”
Na busca por depoimentos para o livro, sobressaiu algum tipo de história ?
Eu pedia para as pessoas enviarem um relato específico. Elas escolhiam as experiências mais marcantes, atreladas às memórias mais antigas. E a infância marca muito na questão racial porque é a época em que você está formando identidade. Chegaram vários relatos de violência na infância, principalmente na escola, vinda de outros coleguinhas. Também recebi muitos de violência física e verbal e de abordagens policiais.
A infância marca muito na questão racial porque é a época em que você está formando identidade. Então tiveram vários relatos de violência na infância, principalmente na escola, vinda de outros coleguinhas
Depois da publicação do livro continuaram a chegar depoimentos? O que mudou?
A partir do momento que o livro foi publicado, outras pessoas continuaram enviando relatos para página e eu continuei com esse trabalho durante um tempo. Quando você tem um livro, algo que foi chancelado por uma editora, você ganha mais credibilidade. Concedi entrevistas para jornais, revistas e sites. Dei palestras em diversos lugares, como escolas públicas e também em colégios de classe média alta. Essa foi a grande diferença da minha participação no debate público depois do lançamento. Pois a partir do momento que você tem só tem, entre aspas, uma página, numa rede social, você é apenas uma pessoa dali, daquele espaço virtual. O livro torna aquilo palpável e mais real para a cabeça dessas pessoas. Então o seu discurso passa a ter mais credibilidade.
Os haters sempre aparecem quando os preconceitos são debatidos, principalmente nas redes sociais. Isso chegou a te afetar?
Já sofri muitos xingamentos, porque na página havia [além dos depoimentos] crônicas escritas por mim de situações que tinham acabado de acontecer. Eu falava no calor do momento se alguma criança negra tinha sido morta por uma bala perdida e se alguém tinha sofrido alguma questão racial na universidade etc. Xingamento mesmo, tipo chamar de macaco, era mais difícil porque as pessoas já sabem que é crime e aí elas tentam disfarçar, sempre tentando tirar o crédito daquilo. Dependendo do que tivesse falado, a pessoa me chamava de “filho da puta”, diziam que estava criando uma mentira, que eu estava querendo colocar negros contra brancos.
Com o tempo isso chegou a me afetar, porque você acaba lidando com o ódio constante. Esse é um dos motivos para não estar mais no dia a dia da página. Uma tática que usava era eliminar imediatamente o que entrava de discurso de ódio. Não deixava prosseguir, porque era prioridade para mim que aquele ambiente fosse seguro e saudável para pessoas negras. Que elas pudessem se sentir à vontade para contar suas histórias.
Muitas vezes as pessoas diziam que nunca tinham contado tal relato. Elas se sentiam acuadas, se sentiam mal guardando suas histórias. Criar um ambiente saudável era prioridade pra mim
O racismo está na estrutura de nosso País e de vários outros, mas há políticas públicas e organizações que ensaiam ações para combatê-lo. Alguma iniciativa já te procurou para parceria?
O que eu propus, e algumas fizeram, era que no debate e na conversa direta as vítimas pudessem entender que não estavam sozinhas. Estive em universidades, fui a muitas escolas nas periferias. Foram muitas palestras. O campo dos afetos, da troca e da escuta é muito importante, porque sem isso ela não consegue seguir em frente. O racismo paralisa.
Eu sabia que a minha missão dentro daquele projeto era expor essas histórias e fazer com que isso furasse a bolha das pessoas negras, chegasse às brancas e às que têm poder aquisitivo e político e para poder criar ações que atuassem na vida das pessoas de outras maneiras.
O campo dos afetos, da troca e da escuta é muito importante, porque sem isso ela não consegue seguir em frente. O racismo paralisa
Você acha que as pessoas estão debatendo mais sobre racismo?
Nós avançamos, não tanto como a gente gostaria. Mas o debate vem alcançando um número maior de pessoas. Hoje, se for à livraria, verá um número maior de livros dedicado ao assunto. Se você ler um jornal ou revista, verá mais matérias sobre racismo. Porém, quanto mais pessoas acabam escutando e compreendendo as questões raciais, mais gente vai ter pra odiar e combater esse avanço.