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Apaixonada pela Casa Verde, em São Paulo, pedagoga tem história de luta

Por: Priscila Pacheco . 24/12/2022

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Apaixonada pela Casa Verde, em São Paulo, pedagoga tem história de luta

Maria Cristina dos Santos foi convidada a participar do projeto Míticax, que exibe imagens de mulheres com mais de 60 anos de idade que vivem no Bairro

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24/12/2022

Retrato da pedagoga aposentada Maria Cristina dos Santos para projeto no bairro da Casa Verde, em São Paulo. Foto: Míticax

Neta de um dos primeiros moradores da Casa Verde, na zona norte de São Paulo, Maria Cristina dos Santos, de 62 anos, começou a trabalhar como doméstica aos 13. Enfrentou um casamento abusivo e se virou do avesso para sustentar a casa e pagar a faculdade de pedagogia. Mulher negra e determinada, foi uma das fotografadas para ilustrar uma exposição de lambes em muros do bairro onde cresceu e vive até hoje.

Em uma tarde cinzenta de dezembro, que nem parecia ser de verão, a hoje pedagoga aposentada Maria Cristina contou detalhes da sua biografia. Lembrou-se que quando muito pequena viu o cortejo do corpo do avô percorrer a rua Zilda após ser velado na própria casa. Nascido em Descalvado, no interior de São Paulo, Vicente Serra chegou na capital na década de 1920 e comprou um lote de terra na Casa Verde.

A região, em 1638, foi propriedade rural de Amador Bueno Ribeiro, um homem com muitos títulos no Brasil colonial — provedor da capitania, capitão mor, ouvidor, contador de fazenda real e juiz de órfãos. As terras, que já eram chamadas de Casa Verde, passaram por diversos donos ao longo dos séculos. Em 1913, os herdeiros do último proprietário, o fazendeiro inglês João Maxwell Rudge, decidiram lotear as terras e tentaram chamar o lugar de Vila Tietê, mas o nome não colou porque todo mundo chamava de Casa Verde.

Uma ponte de madeira para atravessar o rio Tietê foi construída pelos Rudge em 1915, o primeiro bonde começou a funcionar na área em 1922. Uma lei de dezembro de 1928 oficializou o distrito de paz da Casa Verde. A energia elétrica só chegou em 1937 e a ponte de madeira virou de concreto em 1954.

Pobreza social — Foi nesse distrito que Vicente Serra, que sempre andava com os sapatos lustrados e o bigodinho bem aparado, trabalhou e criou os sete filhos. A mãe de Maria Cristina era a única mulher do grupo. Casou-se, mas ficou viúva com trinta e poucos anos de idade.

Era pressionada pelo machismo dos seis irmãos. Trabalhou como empregada doméstica e cozinheira. Maria Cristina conta que não faltava comida em casa, mas vivia com limitações. “Era uma roupinha e um sapatinho no fim do ano. Aniversário comemorei pela primeira vez já adulta”, disse ao comentar o que a mãe podia oferecer.

Sobre brinquedos, Maria Cristina lembra-se apenas de uma boneca de louça grande, que ela nem brincava para não correr o risco de quebrar. No entanto, quando recebeu a visita de uma prima, resolveu mostrar o brinquedo, mas a garota jogou a boneca no chão. Uma memória triste para a moradora da Casa Verde. Maria Cristina gostava de brincar de fazer bolos de barro e de professora. Não aprendeu a andar de bicicleta, mas hoje se diverte ao alugar triciclo no Parque Ibirapuera, na zona sul.

O primeiro emprego de Maria Cristina aos 13 anos de idade foi na mesma casa em que a avó e a mãe haviam sido serviçais. O salário minúsculo era complementado por coisas que a patroa dava. “Eu ganhava muita geleia”, diz. Depois, começou a trabalhar como bordadeira usando máquina. O primeiro emprego registrado veio em 1978, poucos dias antes de completar 18 anos de idade, como telefonista na Telesp (Telecomunicações de São Paulo), empresa de telefonia criada em 1973 e privatizada a partir de 1998.

Maria Cristina conseguiu subir de cargo na empresa, mas a carreira foi interrompida em 1984. Ela precisava cuidar da filha mais velha que havia nascido naquele ano e também sofria pressões do marido para largar o emprego, pois sentia ciúmes por haver outros homens no local. Maria Cristina voltou para o mercado de trabalho como funcionária de uma creche no bairro. Alguns anos depois, passou em um concurso da prefeitura e começou a função de auxiliar de desenvolvimento infantil.

Em 1992, aos 32 anos de idade e já com duas filhas, Maria Cristina começou a estudar pedagogia em uma faculdade particular em Santana, na zona norte, depois de conseguir dinheiro com a sogra para pagar a matrícula. Apesar de ter trabalho fixo, a universitária começou a fazer bolos, salgados e outros doces para complementar a renda. “Eu não tinha que pagar só a faculdade. Tinha que pagar água, luz. Tinha que pagar as pessoas que cuidavam das minhas filhas, porque eu tinha medo de deixar elas com o pai”, explica.

O marido de Maria Cristina havia começado a usar drogas naquela época e não contribuía para as despesas da casa. O homem também tentou proibir que ela estudasse.

Diante das insistências do marido para que abandonasse a graduação, Maria Cristina pediu ajuda de Rosmary Corrêa — conhecida como delegada Rose, Rosmary foi titular da 1ª DDM (Delegacia de Defesa da Mulher) do Brasil inaugurada em 1985 no centro de São Paulo —, que havia conhecido na primeira creche em que trabalhou. Maria Cristina conta que a delegada Rose conversou diretamente com o homem. A paulista conseguiu se formar. Não teve festa.

Maria Cristina abriu uma lanchonete, mas o marido pôs fim no negócio. Maria Cristina estudou fotografia, mas o marido tomou a máquina fotográfica.

O casamento acabou em 1997. A filha primogênita tinha 13 anos e a caçula 9.

Outros caminhos — Em uma das escolas em que trabalhou, a pedagoga conheceu uma psicóloga que sugeriu que ela fizesse um curso de psicanálise. Maria Cristina conseguiu uma bolsa de estudos e começou a nova jornada. Durante o curso, ela que já foi evangélica, se aproximou do espiritismo, religião que segue há pelo menos 20 anos.

“O kardecismo veio somando. Eu achava que carregava o mundo nas costas. Eu aprendi que eu não preciso disso. Eu preciso simplesmente ser eu. Eu não tenho que carregar ninguém nas costas. Eu tenho que ser simplesmente eu e viver com toda essência. Viver e ser feliz. Feliz com aquilo que eu sou como pessoa, como ser humano”, diz ao comentar sobre a religião.

Maria Cristina trabalhou como coordenadora pedagógica e diretora em diferentes instituições de ensino infantil até 2016. Enquanto esperava a resolução das burocracias para se aposentar por tempo de trabalho, aprendeu a fazer bonecas de pano e começou a vendê-las. O foco era a produção de bonecas negras.

No primeiro ano da pandemia de Covid-19, em 2020, Maria Cristina se juntou com algumas amigas e começou a fazer bonecas mais simples de fuxico, flor feita com retalhos, para doar a crianças sem condições financeiras para comprar brinquedos. O projeto durou até 2021. A tendinite nos dois pulsos fez com que ela deixasse as bonecas de lado. Agora, às vezes, ela faz brincos forrados com tecido. O trabalho é mais leve para o corpo que tem os tendões irritados.

Recentemente, Maria Cristina começou a contribuir para uma página no Instagram chamada SIRA (Saiba Identificar um Relacionamento Abusivo). Ela escreve para as postagens das quintas-feiras. Ela quer escrever um livro sobre abuso.

A aposentada se casou novamente e conta estar muito feliz com o homem que conheceu aos 50 anos de idade. A filha mais velha é divorciada, tem três filhos e mora em um apartamento na Casa Verde. A caçula é mãe solo de duas crianças e vive na casa que era do bisavô. O marido de Maria Cristina tem quatro netos.

O convite para ser fotografada e ilustrar os muros do distrito veio da prima, a produtora cultural Michelle Serra. Junto com o também produtor cultural Nando Motta, Michelle idealizou o projeto Míticax, que mostra fotos de mulheres com mais de 60 anos de idade que moram na Casa Verde. Quem quiser ver as imagens, basta passar pela rua Dr. Sebastião de Lima, altura 293.

Maria Cristina, que considera a Casa Verde como um lugar de acolhimento, terminou o dia cinzento de dezembro emocionada porque recebeu a notícia de que uma das filhas havia conseguido comprar um carro.

Míticax: exposição de lambes é ação cultural (e social) em que são exibidas fotos de moradoras da Casa Verde com 60 anos ou mais: ‘Um legado para as mulheres que virão’. Foto: Rafael Diegues

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