“Autores periféricos fazem brotar flores no lixão”, diz Wesley Barbosa | Mobilidade Estadão | Na perifa

Buscando sugestões para:


“Autores periféricos fazem brotar flores no lixão”, diz Wesley Barbosa

Por: Juca Guimaraes . 05/01/2022

Publicidade

Conteúdo patrocinado por
Na Perifa

“Autores periféricos fazem brotar flores no lixão”, diz Wesley Barbosa

Escritor de Itapecerica da Serra narra sua visão da periferia e do povo que vive nela

7 minutos, 15 segundos de leitura

05/01/2022

O escritor Wesley Barbosa: 'Para a maioria dos políticos, principalmente os que estão no poder hoje, não seria muito conveniente que a população abrisse os olhos e começasse a ler livros'. Foto: divulgação

O escritor Wesley Barbosa é autor de uma trilogia literária enraizada em desespero e ódio e ambientada na realidade das periferias. Os dois primeiros volumes já estão publicados e o terceiro sai em 2022. A editora é a Ficções e o formato, de bolso.

Desde os 9 anos, Barbosa criava histórias. Aos 16, começou a escrever “como um louco”. Chegou aos 31 narrando a sua visão sobre as periferias e o povo que vive nelas, tudo escrito no calor dos acontecimentos, em pedaços de papel que guardava nos bolsos da calça. Concluiu o ensino médio e trabalhou como vendedor ambulante de CD e DVD, secretário de escola, bibliotecário e atendente de lanchonete em faculdade. A estreia como autor se deu num livro de contos em 2016.

Parágrafos Fúnebres, primeiro volume da trilogia, foi publicado em 2020. No ano passado, saiu Relato de um Desgraçado sem Endereço Fixo, que tem como protagonista o escritor Vinícius. Ele vive nas ruas depois de ser expulso de casa. “Um cara bem-nascido jamais saberia escrever sobre a dor de viver e morar em uma favela”, diz o escritor. “Só quem passou fome na vida sabe que ela é amarela, relatou Carolina de Jesus em seu Quarto de Despejo. Ainda assim, nós autores que escrevemos sobre a quebrada conseguimos fazer brotar a flor em meio ao lixão em que se fartam os vermes.”

Como surgiu o seu interesse por literatura?
O lugar onde eu mais gostava de ficar era a biblioteca pública do meu bairro. Ali, na maior parte do tempo, eu estava lendo livros de variados assuntos: filosofia, poesia e romances. Nessa época li boa parte dos livros de Jorge Amado. “Tieta do Agreste, por exemplo, devorei em apenas quatro dias. Daí, quando fui ver, eu já era um cara viciado nas palavras: gostava de procurar o significado delas no dicionário. Quando eu encontrava o livro de um autor sobre o qual eu nunca tinha ouvido falar, essa era a deixa para procurar tudo sobre aquele escritor. Foi desse jeito que, lendo na orelha de um livro, fio esquei surpreso que o Friedrich Engels, parceiro de Karl Marx, escreveu ter aprendido muito mais sobre economia lendo os livros de Balzac do que estudando na própria universidade. Então, quando li pela primeira vez Eugênia Grandet e descobri que aquele livro fazia parte de uma série de livros, de uma obra intitulada A comédia humana, quis saber tudo sobre esse autor. Recentemente li a biografia de Balzac, escrita por Stefan Zweig e já estou louco para ler outros livros citados por ele, porque a curiosidade, talvez por falta de lazer naquela época, fez despertar em mim o prazer pela leitura.

Em Itapecerica da Serra tem lugares que incentivam o desenvolvimento da leitura ou da escrita?
Morei em vários bairros de Itapecerica. Para onde você olhasse, havia bares e igrejas, gente bêbada deitada em cima da calçada, crianças empinando pipa em cima da laje de algum vizinho, e gente morta enrolada em sacos de lixo. Pelo menos na minha época, nunca vi nenhum lugar que incentivasse a leitura. Se tivesse eu não saberia, porque ninguém, nem mesmo na minha casa, tinha esse hábito. Apenas anos mais tarde eu fui saber dos vários saraus espalhados pela cidade, mas no meu bairro, o único local em que um escritor poderia se desenvolver era na biblioteca Municipal, que algum tempo depois já não estava mais em funcionamento.
Tem algum tipo de feira literária ou algum movimento independente de escritores em Itapecerica?
A literatura marginal, movimento literário fundamental para as periferias de São Paulo, foi potencializada com o surgimento de vários autores nos saraus e encontros literários. Eu frequentava o encontro de Literatura Marginal nas Fábricas de Cultura, mas às vezes eu tinha que passar por baixo da catraca do ônibus, para ir a algum desses eventos, porque lá no meu bairro não tinha nada.

Como foi o processo de escrita e publicação do seu primeiro livro de contos?
Diabo na Mesa dos Fundos, editado em 2016 pela editora Selo Povo, do Ferréz, é um livro do qual tenho muito orgulho e que já está na sua sexta tiragem, tudo vendido de mão em mão ou pela internet. Escrevi esse livro ao longo de seis meses na época em que eu trabalhava como vendedor ambulante e trombava com muita gente por aí que virou personagem do livro. Eu não fiz uma pesquisa para este livro. Eu escrevia sempre que pintava uma inspiração. Às vezes eu parava em um boteco e escrevia algum trecho de um conto e depois corria até uma Lan House para terminar de escrever o texto. É um livro barulhento, com muitas vozes periféricas gritando para serem ouvidas.

Como surgiu a ideia de escrever uma trilogia de bolso, qual a relação entre as histórias e personagens do primeiro livro com este segundo livro?
O diabo na mesa dos fundos dialoga com os contos da série no sentido de ser a minha voz narrando aquelas histórias. Parágrafos fúnebres, o primeiro livro dessa série, que venho escrevendo desde 2020, fala sobre a história de um homem chamado Joaquim, que está preso há dez anos por ter cometido vários crimes, como assaltos e homicídios. Ele tem um companheiro de cela, o Juarez, que o incentiva a ler livros. Logo ele se interessa em escrever cartas para seus familiares, mas devido a pandemia essas cartas não chegam aos destinatários e começam a acontecer rebeliões dentro da cadeia. Logo que publiquei esse texto em um livro, ele esgotou rapidamente e eu tive que fazer uma segunda tiragem, muitas pessoas me escrevendo dizendo que queriam mais. Então, ano passado publiquei Relato de um desgraçado sem endereço fixo. Este ano irei publicar o terceiro intitulado “O rebento do ódio”. Os três livros, editados por Alonso Alvarez, da editora Ficções, têm uma coisa muito em comum: o desespero.

O que tem de autobiográfico no personagem Vinícius, um escritor periférico?
Vinícius é um personagem que criei para contar um pouco dos perrengues por que passei na época em que eu não tinha nenhum livro publicado. Nessa história criei alguns dos personagens, outros são inspirados em pessoas que eu conheci, na época em que passava a maior parte do tempo perambulando pelas ruas e lendo livros, porque quase fiquei sem ter onde morar.

Como foram as suas pesquisas e vivências para fazer a composição do período em que o personagem passa vivendo nas ruas? Como você fez para narrar o universo de quem vive na vulnerabilidade e na invisibilidade social?
Não digo que conheço profundamente o universo de quem está há dez, ou trinta anos vivendo nas ruas, porque a história do meu personagem tem muito das minhas próprias vivências, de coisas que eu presenciei na época em que fiquei sem ter onde morar. Aquelas situações, às vezes sem ter água até mesmo para beber, ou passando dias sem comer nada, ficaram internalizadas em minha alma e quando escrevi Relato de um desgraçado sem endereço fixo, muita gente me disse depois de ler o livro que passou a olhar para as pessoas deitadas nas sarjetas, ou revirando a lata do lixo, porque antes era como se elas não existissem.

O seu livro também aborda a questão da literatura não ser muito difundida nas periferias. Por que isso acontece? 
Sempre que reflito sobre a dominação social, lembro do livro 1984 [George Orwell], que li na época da escola e que abriu a minha mente: há um poder oculto exercendo influência nas várias camadas da sociedade, e esse poder está relacionado à alienação do povo, porque praticar a leitura te torna alguém mais crítico e mais criterioso, até mesmo no momento de apertar o botão da urna. Para a maioria dos políticos, principalmente os que estão no poder hoje, não seria muito conveniente que a população abrisse os olhos e começasse a ler livros, e tem o problema também de as pessoas não se enxergarem em livros escritos pela classe média alta, isso pra mim também é um projeto de alienação e apagamento da nossa história. No entanto, uma nova história está sendo contada, graças aos autores que têm produzido literatura sobre as periferias.


De 1 a 5, quanto esse artigo foi útil para você?

Quer uma navegação personalizada?

Cadastre-se aqui

0 Comentários


Faça o login