Evento de fotografia em São Paulo abre espaço para quem está na periferia
Photothings tem exibição de documentários, debates e a comercialização de produções artísticas
A arte é capaz de transformar olhares e Marly Porto, de 64 anos, é prova disso. Mestre em Estética e História da Arte e pesquisadora de fotografia, em 2020, ela foi convidada a fazer curadoria para a Biblioteca Nacional da França, em Paris.
Parte de seu trabalho foi encaminhar nomes de fotógrafos brasileiros e a opção foi por profissionais já consolidados e tradicionais. Ao receber as indicações, o responsável por fazer a ponte com o espaço questionou a razão da lista ser formada majoritariamente por homens e todas pessoas serem brancas. O alerta foi o gatilho para compreender que fazia algo limitado.
Dois anos depois, a Photothings se consolida como um dos principais espaços para novos talentos no País. O projeto surgiu em 2015 no formato de feira presencial que leva o mesmo nome e acontecerá nos próximos dias 4 e 5 de junho, amanhã e depois, das 12h às 19h, na Unibes Cultural.
O encontro contará com 40 estandes de venda de produção fotográfica autoral e uma programação paralela com lançamento de livros, cursos, mostra de documentários e conversas entre fotógrafos, curadores, editores e profissionais das artes visuais. Entre os convidados, estão nomes como o do fotógrafo, educador e artista plástico Marcelino Melo, o Nenê, e da multiartista, jornalista e fotógrafa documentarista Fernanda Sousa.
A participação gratuita aos expositores e ao público tem como critérios de seleção a nacionalidade brasileira e que os produtores não sejam representados por galerias, como forma de abrir espaço a nomes independentes sem acesso a esses espaços.
A diversidade começa na avaliação dos trabalhos encaminhados. Em 2022, o júri era composto por nomes consagrados como Bob Wolfenson, mas também artistas residentes nas periferias. Dos 10 selecionados, cinco foram escolhidos para ter um fotolivro autoral produzido pelo projeto e os demais integrarão uma exposição que começa no próximo dia 9 na estação Paraíso do Metrô, em São Paulo, e permanecerá aberta ao público durante todo o mês de junho.
Criadora e organizadora do evento por meio da produtora Porto Cultural, Marly afirma que ingressar no mercado da arte é um processo caro e pouco acessível e envolve, além da própria exposição, o investimento em catálogo, iluminação e divulgação. Quem não tem nome e nem dinheiro encontra dificuldade para furar a bolha.
“Para estar inserido numa rede de mercado da arte, o principal caminho ainda é a galeria, a porta que referenda e faz subir de status. Mas muitas galerias só emprestam o nome, o artista tem de fazer a exposição toda acontecer. Nosso objetivo é dar oportunidades a fotógrafos brasileiros para que possam mostrar o trabalho em um país em que a quantidade de galerias é muito pequena”, explica. O cenário brasileiro contrasta com o de outros países, como a França, onde a fotógrafa morou. Por lá, os centros de exposição são abundantes e recebem investimento público para funcionar.
Outro ponto incontornável e destacado na análise de Marli: as produções culturais não escapam da desigualdade social brasileira. Com a renda concentrada nas mãos de poucas pessoas, a oferta não precisa ser grande e pode ser destinada a poucos. Isso gera ações como as chamadas previews, organizadas pelas grandes feiras de fotografia para fazer com que o colecionado se senta diferenciado e alimenta um circuito estruturado ao redor de uma minoria com alto poder aquisitivo.
Povo preto nas lentes de um Nego — Fotógrafo, designer e produtor cultural, José Domingos Júnior, o Nego Júnior, de 42 anos, encontrou-se com a fotografia em 2010, quando começou a frequentar bailes de samba rock e criou o coletivo Samba Rock na Veia. Por meio da organização, adquiriu a primeira câmera e passou a registrar os bailes. Mas não parou por aí.
Nascido em Campo Limpo, no extremo Sul de São Paulo, Nego Júnior já teve fotos expostas na Irlanda, participou de projetos pelo Sesc São Paulo e na Photothings promove o lançamento do primeiro livro solo produzido pela Porto de Cultura, Quem Dera Só Minha Vontade Fosse.
Em suas lentes, o foco central é a população preta e a realidade que conhece de perto. Dos salões onde ecoam as batidas da música negra brasileira aos terreiros onde os atabaques dão o tom.
“Se eu estou fotografando um terreiro, posso largar a câmera e fazer parte do ritual porque eu sei o que está acontecendo ali. Se eu estou num baile, eu posso largar a câmera e ir dançar, porque eu sei fazer isso. Se estou fotografando numa quebrada, posso largar a câmera e trocar uma ideia com a galera no mesmo dialeto porque faz parte da minha caminhada. Eu fotografo lugares dos quais eu faço parte”, ressalta.
Fotografia cura — Entre as muitas lições que as lentes ensinam, a feira Photothings trará os aprendizados expressos nas histórias de autodescoberta evidentes na vida e na arte de Altina Leite Gomes, de 46 anos, a Tina Gomes. Para muitos, fotógrafa, artista plástica e artesã. Para ela mesma, “uma mãe que lutou para criar os sete filhos”.
Tina nasceu no Guarujá, litoral de São Paulo, mas foi na Cidade Tirantes, no extremo Leste de São Paulo, que encontrou seu lugar e de onde tira a matéria-prima que inspira as imagens e serve como base para os quadros. Termo, talvez, limitante para quem diz não saber se limitar às telas e transforma as paredes do apartamento em galeria.
Após a separação, Tina foi morar na Cidade Tirantes e começou a trabalhar numa empresa de ônibus onde tornou-se cobradora e aproveitava as viagens para registrar o que achava mais bonito com um celular usado que ganhou do filho.
As produções expostas nas redes sociais surpreenderam o fotógrafo Connink Júnior. A convite da também fotógrafa Rita Barreta, ela foi convidada a integrar o Fotoclube Luminous, onde ganhou a primeira câmera, e chamou a atenção do jornalista Gilberto Dimenstein.
O trabalho da multiartista ganhou repercussão a ponto de, em 2014, expor no Conjunto Nacional, em São Paulo, e passar a ser entrevistada em programas de rádio e televisão.
“Todo mundo dizia que estudou na escola Belas Artes, na Panamericana de Artes. O meu currículo dizia que eu era semianalfabeta, mãe de sete filhos, esquizofrênica e moradora da periferia. Eu só queria entrar no Belas Artes para conhecer, mas fui chamada para uma mentoria, que vai acontecer no dia 7 de junho. No final do ano, farei uma palestra da Panamericana. Tá vendo, não dê asas a favelado”, brinca. A ironia é que essa é justamente a proposta da Photothings.
Photothings
Dias 4 e 5 de junho, sábado e domingo, das 12h às 19h
Entrada gratuita | Unibes Cultural | Rua Oscar Freire, 2500 – 1º e 2º andares – São Paulo
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