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Ser periferiano é reconhecer a potência dos territórios

Por: Riviane Lucena, Embarque no Direito . 17/09/2021

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Ser periferiano é reconhecer a potência dos territórios

Jornalista do Jardim Aracati, em São Paulo, estudou o substantivo (e adjetivo) que define uma população orgulhosa de sua periferia

6 minutos, 23 segundos de leitura

17/09/2021

O periferiano Luiz Lucas: "O ideal é fomentar a ideia de infraestrutura nos bairros e torná-los ponte de acesso e conquista, de modo que os moradores colaborem nessa construção por meio de políticas públicas". Foto: Arquivo Pessoal

Foi na música Tarde para Desistir, do rapper Rincon Sapiência e da banda NX Zero, que o jornalista Luiz Lucas, de 24 anos, morador do Jardim Aracati, extremo sul de São Paulo, conheceu a palavra periferiano. O termo é usado para definir pessoas que têm orgulho de morar na periferia e, depois desse encontro, viria a ser o tema do trabalho de conclusão de curso (TCC) de Luiz.

Tipo um queniano, tendo resistência Periferiano, conheço a violência Lágrimas, olhos vermelhos como o marte E o sorriso abre, quando faço minha arte Tô na chuva, também tô no sol que arde É sem chance, pra desistir já é tarde

Trecho de Tarde para Desistir (Rincon Sapiência)

Desde o primeiro emprego, aos 16 anos, Luiz tinha raiva de passar duas horas no transporte público fazendo o trajeto do bairro até a região central da cidade. Ele se perguntava qual o motivo de os pais terem ido morar em um lugar tão distante. “Eu achava que eles tinham culpa por eu estar passando por aquilo”, diz.

Há cinco anos, Luiz conheceu o portal Desenrola e Não Me Enrola, um coletivo de comunicação periférica da região do Jardim Ângela, também na zona sul paulistana. Além da produção de notícias sobre a potência das periferias, a organização oferece formação gratuita de jornalismo para jovens. Luiz, que na época já fazia faculdade, foi ao Desenrola complementar sua formação. “Existe o Luiz de antes, e o de depois do Desenrola. Thais e Ronaldo [os fundadores do coletivo] me mostraram uma outra periferia, mais cultural, e com diversos pontos positivos”, conta Luiz.

Decidido a unir os conhecimentos universitários à própria percepção periferiana que surgia naquele contato, um novo sentimento em relação ao território, Luiz buscou nesse combinado o assunto de seu TCC. Era a oportunidade de pesquisar e falar do orgulho do periferiano — e a importância de tê-lo.

Palavra e identidade

Durante os estudos, o jornalista encontrou diversas reflexões que ajudam a dar sentido ao substantivo, ou adjetivo, periferiano. Um dos exemplos é um texto do ator e escritor Gregório Duvivier, publicado no jornal Folha de S. Paulo, sobre o termo “Brasiliano”. O artigo diz o seguinte: “Nacionalidade, no português, é -ano (italiano, americano, mexicano) ou -ês, (inglês, francês, polonês). Mais raramente, termina em -ino (argentino, marroquino) ou -ense (costarriquense, israelense).” Na mesma reflexão, Duvivier observa que não existe nenhuma outra nacionalidade que termine com “eiro” e que palavras com essa terminação indicam profissão (funções, atividades), como porteiro, pedreiro e padeiro.

O substantivo “brasileiro” em sua origem era usado para nomear trabalhadores que extraíam borracha do pau Brasil no período colonial. Brasiliano (que o dicionário considera, mas quase não é usado) dá nome à gente do Brasil. Periferiano nomeia a gente da periferia. O brasiliano da periferia com orgulho de seu território.

Periferiano segue, portanto, a lógica de outras palavras associadas a pertencimento, identidade e  reconhecimento da pessoa como parte do povo de um lugar. A defesa desse conceito, em português claro, é um modo de existir, resistir e enxergar valor. Um morador pode ou não adotar o termo para dizer em uma palavra quem é e de onde vem, mas o que vai importar no dia a dia é estar presente e atuante no debate que trata da consciência de viver, enxergar e reconhecer a potência da periferia.

Mais reflexão sobre a importância do nome que é dado às coisas e da importância de se apropriar do sentido está neste trecho do livro Ensinando a Transgredir, da autora Bell Hooks. Ela fala da “língua do opressor”, referindo-se ao inglês: “Não é a língua inglesa que me machuca, mas o que os opressores fazem com ela, como eles a moldam para transformá-la em território que limita e define, como a tornam uma arma capaz de envergonhar, humilhar e colonizar”

Consciência social

A partir dos estudos e da conscientização que veio com eles, Luiz passou a usar a seu favor a distância em trânsito (sem nunca esquecer que o acesso digno à cidade tem de ser democratizado). “Passei a aproveitar o tempo no transporte público para ler os textos da faculdade, fazer os trabalhos e até escrever poemas como forma de desabafo”, conta. Hoje ele não pensa mais em sair do bairro onde nasceu, mas o sonho é que o metrô chegue mais perto da casa. “Comecei a querer conhecer melhor meu bairro. Como surgiu, como se desenvolveu, quem trabalhou pra isso”, acrescenta.

A aprovação no curso de jornalismo veio em 2019, com o artigo Quebrada de Corpo e Alma: a Visão Periferiana da Comunicação e da Cultura no Extremo sul da cidade de São Paulo. O texto analisa notícias dadas sobre os bairros da região e propõe outras narrativas, feitas por coletivos — locais e independentes — voltados para cultura e comunicação.

O objetivo com o TCC foi mostrar para as pessoas que morar na periferia é motivo de orgulho, para além das mazelas que não podem ser ignoradas. Entre os pontos positivos, o autor destaca a qualidade criativa e de resistência que se manifesta em intervenções culturais como o Sarau da Cooperifa, no Capão Redondo, e a Feira Literária da Zona Sul (Felizs). “É preciso balancear a realidade para entender que existem várias violências na periferia, mas por que não existe incentivo e organização para mudar essa realidade?”, diz Luiz. “O ideal é fomentar a ideia de infraestrutura nos bairros e torná-los ponte de acesso e conquista, de modo que os moradores colaborem nessa construção por meio de políticas públicas.”

Outras vozes

Um estudo da Global Opportunity Youth Network (Goyn) em São Paulo, organização que atua com ações em prol da juventude, mostrou que na cidade de São Paulo há 2,57 milhões de pessoas entre 15 e 29 anos de idade e, dessas, 30% estão em situação de vulnerabilidade social.

São mais de 766 mil jovens sem oportunidade de estudo ou emprego formal e que convivem diariamente com o racismo estrutural, a evasão escolar, o desemprego e a exclusão digital. O Na Perifa conversou com dois desses jovens para saber se e como eles expressam uma consciência periferiana em relação ao lugar em que vivem. “Aprendi muito sobre música e arte no bairro onde eu moro”, conta o músico Vitor Manoel Ramos Santos, de 21 anos, morador do Parque Arariba. “Desenvolvo mais a mente com as ideias que descobri no grafite. Ele faz parte da cultura de periferia assim como o rap, hip hop, e, como tudo que produzimos é marginalizado, continuar é uma forma de resistência.”

Para Vitor, ver o trabalho de outros artistas locais o incentiva a continuar. Sobre as coisas negativas que vê no bairro, ele acredita que a educação é a solução para outros jovens e crianças dali. Na opinião da comunicadora Tamires Rodrigues Santos, de 24 anos, faltam recursos na periferia. Ela vive na Vila Nagibe e afirma que, se houvesse mais investimentos, a situação seria diferente.

Nos últimos meses, devido à pandemia, ela tem testemunhado diversas ações sociais feitas por moradores em prol de uma vida mais digna a quem perdeu emprego e renda com a crise, e tem registrado, divulgado, escrito a respeito. “Se com tão pouco recurso a gente já faz tanto, imagine com mais.”

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