Teatro: ‘Uma Leitura dos Búzios’ faz crítica social sobre passado e presente
Movimento popular conhecido como Conjuração Baiana é fio condutor para a exposição de desigualdades sociais, racismo e apagamento histórico
A Revolta dos Búzios, também chamada de Conjuração Baiana e Revolta dos Alfaiates, é tema do espetáculo teatral Uma Leitura dos Búzios, em cartaz no Sesc Vila Mariana, em São Paulo. O levante popular ocorreu em Salvador, na Bahia, entre 1798 e 1799, reivindicando a libertação dos escravizados e a independência em relação a Portugal. A montagem, que tem roteiro de Mônica Santana e direção de Marcio Meirelles, ambos baianos, mescla passado e presente com música, dança e audiovisual — e usa o movimento popular de fio condutor da narrativa, que expõe desigualdades sociais, racismo e apagamento histórico.
A cantora baiana Virgínia Rodrigues, que na peça representa a Pátria Brasil, chama atenção em canções de tradição banto, da África. A trilha sonora ainda apresenta composições feitas especialmente para o espetáculo pela musicista Jadsa e pelo diretor musical João Milet Meirelles, também naturais da Bahia, além de percussão e música eletrônica que valorizam a cultura afro-brasileira.
Marcio Meirelles diz que os vídeos são uma narrativa paralela que marcam o momento atual na história. Neles são destacadas notícias contemporâneas, a exemplo de casos de violência contra a população negra e provocações com imagens de carnes sendo cortadas para alimentação, o que pode fazer alusão ao tratamento dado aos corpos negros.
A plateia ouvirá que o povo da Bahia quer mudança, uma declaração que parece se referir à época do conflito, mas que pode ser atual como a alegação “um corpo preto em movimento sempre vai ser revolucionário”. Mônica Santana comenta que discussões que existiam naquele momento do século 18 permanecem atuais. Por exemplo, as demandas do povo negro pelo direito à vida.
MOVIMENTO POPULAR
A Conjuração Baiana teve inspiração nos ideais da Revolução Francesa (1789-1799) e na Revolta de São Domingos, no Haiti (1791-1804), em um momento no qual a população enfrentava uma crise socioeconômica e estava insatisfeita com o controle da Coroa Portuguesa. Inicialmente, o movimento teve o apoio das elites locais, que desejavam o fim do pacto colonial para aumentar os lucros dos próprios negócios, além de alcançar mais poder econômico e político. No entanto, os elitistas começaram a se afastar conforme grupos formados por escravizados e profissionais pobres, que reivindicavam liberdade, igualdade e justiça, intensificaram a participação no movimento. Quando a revolta foi sufocada pelo governo, somente as lideranças pretas foram enforcadas em praça pública e esquartejadas, além de terem os pedaços dos corpos espalhados por Salvador. Os brancos receberam o perdão, foram presos ou degredados. Um exemplo é o caso do médico e jornalista Cipriano Barata, que apesar de também ser um líder da revolução, ficou preso somente por alguns meses.
“A gente vive num país onde a população negra continua dentro dos índices de morte das mais variadas formas”, lembra a escritora. A afirmação de Mônica é confirmada por estudos. Segundo dados divulgados em novembro pela Rede de Observatórios em Segurança Pública, negros representam a maioria dos mortos em operações policiais de 2021. Pesquisas de diferentes instituições também apontaram que esse grupo sofreu mais com a pandemia de Covid-19, sendo um dos motivos o acesso precário ao atendimento de saúde. A apresentação termina reforçando a união dos diferentes tempos. “O amanhã enviou pássaros para ontem: quando a gente conhece o passado, trabalha para que haja futuro. No presente, a gente faz, a gente se assenta”, diz o texto.
Uma Leitura dos Búzios mostra os condenados à morte — os soldados Lucas Dantas e Luiz Gonzaga das Virgens, o aprendiz de alfaiate Manuel Faustino e o mestre de alfaiate João de Deus — logo no início da encenação. O ourives Luiz Pires também seria executado, mas fugiu e nunca foi encontrado. Os nomes desses homens são citados em textos sobre a história da Conjuração, mesmo que superficialmente. No entanto, o mesmo não ocorre com as mulheres, principalmente as negras. Meirelles conta que ao receber o convite do Sesc para produzir o espetáculo se perguntou sobre onde estavam as mulheres nessa história que conta com tantas vozes masculinas.
PARTICIPAÇÃO FEMININA
Documentos históricos confirmam que houve uma participação feminina na revolta, conforme pesquisou Patrícia Valim, consultora em pesquisa histórica da peça e professora do programa de pós-graduação em história da Universidade Federal da Bahia. Mulheres depuseram para os processos jurídicos, negras foram presas por causa dos homens com quem estavam envolvidas e tiveram as casas invadidas pelo Estado durante a revolução. Além disso, a sentença de morte dos julgados foi assinada por uma mulher, a rainha de Portugal D. Maria I. Por causa desse apagamento das figuras femininas nos acontecimentos, a narração da peça de teatro é feita por mulheres e Virgínia Rodrigues foi escolhida para representar a pátria. O questionamento de Meirelles também fez com que ele escolhesse Mônica Santana, uma mulher negra, para escrever o texto. A direção de movimento e coreografia também é de uma mulher, a coreógrafa baiana Cristina Castro.
Havia a possibilidade de o espetáculo ser produzido e apresentado na Bahia, mas a escolha de São Paulo foi estratégica. “A gente precisa do palco de São Paulo para que determinadas discussões ganhem corpo e visibilidade”, diz Mônica, que critica o fato de a história do Brasil ser muito centralizada em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Já Meirelles ressalta que queria “contaminar” São Paulo com o tema, que não é regional, pois tinha reivindicações nacionais.
De acordo com Patrícia, contar uma história da Bahia com uma equipe composta por diversos baianos em São Paulo tem um simbolismo e uma representatividade para mostrar que a história do Brasil não aconteceu somente no sudeste. A apresentação na metrópole paulista também é importante para destacar que homens e mulheres pobres e negros e negras fazem política. “Eles pensaram em alternativas, eles propuseram uma república, eles falavam em livre comércio, eles montaram um programa de governo”, diz a historiadora. Para Patrícia, a sociedade precisa ver além da história branca e sudestina.
Por fim, em entrevista para a edição de dezembro da Revista E, do Sesc, a cantora Virgínia Rodrigues enfatiza que a peça de teatro é uma revisão histórica. “Falar da história do nosso povo, da nossa ancestralidade, é não deixar que seja esquecida. Por isso [o espetáculo] é muito importante”, diz.
Serviço
Uma Leitura dos Búzios fica em cartaz até 18/12/2022 e depois de 5/1/2023 a 12/2/2023 | Horários: qui., sex. e sáb., às 21h; dom., às 18h | Onde: Sesc Vila Mariana — R. Pelotas, 141, Vila Mariana — zona sul | Preço: R$ 12 (credencial plena), R$ 40 (inteira) e R$ 20 (meia) | Classificação: 14 anos
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