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Calçadas: desafio diário para quem tem dificuldades de locomoção

Por: Patrícia Rodrigues . 26/03/2020
Meios de Transporte

Calçadas: desafio diário para quem tem dificuldades de locomoção

Buracos, desníveis, falta de acesso, largura variável e excesso de
obstáculos prejudicam o caminhar seguro e confortável na capital

14 minutos, 0 segundos de leitura

26/03/2020

Por: Patrícia Rodrigues

dona-cecilia
Cecília Camargo, 71 anos, encontra diversos obstáculos para se deslocar pelas ruas do Itam Bibi Foto: Marco Ankosqui/Estadão.

Há três anos, a rotina do contador Paulo Camargo Filho, 73 anos, morador do Itaim Bibi há mais de 40, inclui, diariamente (e mais de uma vez todos os dias), uma maratona pelas calçadas do bairro. É ele quem acompanha sempre a esposa Cecília Camargo, de 71 anos, que possui dificuldades de locomoção em virtude de uma doença neurológica.

Para facilitar seus deslocamentos pelas ruas do bairro, ela utiliza uma scooter elétrica. Mas, para isso, enfrenta diversos obstáculos no extenso quadrilátero formado pelas ruas Jesuíno Arruda e Doutor Renato Paes de Barros até chegar à João Cachoeira, importante via de comércio e serviços da região.

“O bairro tem boa infraestrutura, porém o maior poblema são as calçadas, sobretudo nesse trecho onde ainda não houve a requalificação (veja quadro)”, revela Camargo. “São declives, degraus, rampas e falta de padrão que dificultam a passagem da scooter. Isso obriga a utilizar o leito da rua, muito perigoso, inclusive não só para quem está neste tipo de veículo, mas para outros vizinhos que necessitam de andador”, explica.

Dona Cecília e seu marido, Paulo Camargo Filho. Foto: Marco Ankosqui/Estadão.

De acordo com Camargo, postes e bancas de jornais também limitam a circulação e, a partir das 17h30, há ainda a “concorrência” de mesinhas e cadeiras dos muitos bares que estendem seus salões para o espaço público. E, mais recentemente, bicicletas e patinetes elétricos que são deixados no meio da calçada. “As pessoas tentam nos ajudar a ultrapassar essas barreiras, mas isso aumenta o risco de queda”, diz.

Um dos grandes desafios da mobilidade sustentável nas grandes cidades também é torná-las cada vez mais acessíveis e inclusivas, especialmente para idosos e pessoas com deficiência (PCD). Segundo o IBGE (PNAD/2015), a população brasileira com 65 anos ou mais é composta por 29.374 milhões de pessoas, totalizando 14,3% da população total do País. Só na cidade de São Paulo, de acordo com a Fundação Seade, atualmente existem 1,7 milhão de idosos no município (15% da população paulistana) e eles corresponderão a 30% da população do município em 2050.

O último Censo (2010) também mostra que o Brasil possui 15.750.969 pessoas com deficiência (visual, auditiva, motora e intelectual/mental), sendo que para as três primeiras foram verificados diferentes graus de severidade. Na capital paulista, são 810.080 pessoas com deficiência. Todos os números apontam a necessidade da formulação de políticas públicas para melhorar a qualidade de vida desses grupos, incluindo seus deslocamentos.

São Paulo longe do ideal

No final do ano passado, o portal Mobilize Brasil apresentou resultados de avaliações sobre acessibilidade e caminhabilidade nas 27 capitais brasileiras, realizadas entre março e julho de 2019, totalizando 835 avaliações, cada uma delas com 13 quesitos. Foram observadas calçadas apenas no entorno de edifícios e demais equipamentos construídos e mantidos pelo poder público. A média chegou a 5,71, ainda assim muito abaixo da nota 8,0, considerada a mínima para um caminhar seguro e confortável.

A cidade de São Paulo obteve a melhor qualificação no ranking nacional — 6,93, mas ainda está longe do ideal. Muitos locais receberam requalificações nos últimos dez anos, todas realizadas diretamente pelo poder público. Mas, somadas, essas faixas caminháveis não chegam a mil quilômetros, muito pouco se comparados aos cerca de 30 mil estimados em toda a cidade. E, como reforça o estudo, algumas pontes, viadutos e avenidas são praticamente intransponíveis para pedestres e cadeirantes, exigindo estratégias como as de Paulo Camargo.

Manuais

A cidade conta com manuais e guias de calçadas, produzidos em campanhas ao longo de duas décadas, o que resultou em grande diversidade de materiais e padrões aplicados às várias regiões: concreto alisado, blocos e placas de concreto, placas de pedras, mosaicos de pedras portuguesas e ladrilhos hidráulicos. Também recebeu intervenções de caminhabilidade em corredores estratégicos e rotas com grande circulação de pedestres, caso da Avenida Paulista ou mesmo de vias em bairros distantes do centro.

Dados da prefeitura indicam 17 mil km de ruas, supondo que existam cerca de 30 mil km de calçadas, já que algumas ruelas não as têm. Desse total, 17% (cerca de 5.100 km) são mantidos pelo poder público. Ainda assim, são raros e descontínuos os locais realmente caminháveis, e não apenas pela condição das calçadas: sinalização deficiente, ruído e poluição, falta de segurança e conforto são fatores que levam o paulistano a usar o carro até para pequenas saídas. Cerca de 40% das viagens de carro percorrem menos de 2,5 km (pesquisa origem-destino do Metrô).

As calçadas também sofrem com obras das concessionárias de energia, água, telefonia, e de setores da própria prefeitura que, após as intervenções, deixam cicatrizes que viram buracos e desníveis, armadilhas para quem caminha. Além do piso irregular, da largura variável e excesso de postes, o pedestre ainda enfrenta problemas com os semáforos, que jogam sempre em favor do trânsito motorizado: espera-se muito tempo para ganhar alguns segundos e correr para atravessar a via.

Calçadas de SP – Números

  • SP tem cerca de 40 mil quilômetros lineares de calçadas;
  • Cerca de 85% estão sob responsabilidade de particulares;
  • A Prefeitura de São Paulo realiza manutenção dos outros 17%.

*Fonte: PMSP

A calçada ideal

  • Deve ter faixa livre exclusiva à circulação de pedestres;
  • Com largura mínima de 1,20 m para calçadas de até 2,4m e de 50% quando a calçada for maior que 2,4 m;
  • Livre de desnível, vegetação, obstáculos físicos,
  • temporários ou permanentes;
  • Possui superfície regular, firme, contínua e antiderrapante sob qualquer condição.

Readequações na cidade

Em dezembro passado, a Prefeitura de São Paulo, por meio da Secretaria Municipal das Subprefeituras (SMSUB), investiu R$ 200 milhões para implantar o Plano Emergencial de Calçadas (PEC) em toda a cidade. Os critérios utilizados consideram os locais com grande circulação de pedestres, públicos e privados, solicitações realizadas pelo Portal SP156 e acesso aos equipamentos públicos. O objetivo é tornar acessíveis 1.635.740 metros quadrados de calçadas em rotas prioritárias, até o fim de 2020.

A primeira etapa inclui as calçadas mais largas e, posteriormente, as mais estreitas, que precisam ser alargadas. Até o final dessa gestão, estão previstas readequações em cerca de 153 mil metros quadrados só na região central. As calçadas serão feitas de concreto e lisas como o padrão da Avenida Paulista, ofertando mobilidade e segurança para todos. Os mapas com as regiões e vias contempladas pelo PEC podem ser acessados pela internet na plataforma Geosampa, na aba “Sistema Viário”. Confira, a seguir, a entrevista com Cid Torquato, secretário municipal da Pessoa com Deficiência, um dos órgãos envolvidos nesse processo.

Cid Torquato. Foto: Divulgação.

Qual a participação da Secretaria da Pessoa com Deficiência
nas discussões e tomadas de decisão no processo de requalificação das
calçadas
?

Cid Torquato – A proposta da atual gestão é envolver várias secretarias. Sem dúvida, somos o grupo que mais bate na tecla sobre a gestão das calçadas, insistindo na importância de se ter calçadas decentes em São Paulo. Com todos os problemas, ainda estamos falando da cidade mais acessível do Brasil. Temos uma visão estratégica de que calçadas são prioritárias: até o momento não existia no município uma rubrica, uma adequação orçamentária específica para essa finalidade. Calçada não é algo que se trate como espasmos, mas com investimentos sistemáticos, todos os anos, de R$ 200 a R$ 300 milhões.

Pegamos a cidade com calçadas em frangalhos e um dos gatilhos foi repensar a calçada como prioritária, assim como acontece com recapeamento e outras questões de conservação. É um planejamento anual para que, em 10 anos ou menos, todas as calçadas prioritárias estratégicas em São Paulo estejam requalificadas. São quase R$ 300 milhões, se somados os recursos do Plano Emergencial de Calçadas (PEC) mais outras obras relacionadas à mobilidade, caso do Anhangabaú, todo o Centro Velho que terão grandes trechos refeitos, além de parques e praças com investimento específico.

Como foi a escolha desses trechos requalificados?

Torquato – Lá atrás, começamos a fazer um trabalho para entender que calçadas eram prioritárias e, para isso, consultamos várias bases de dados, especialmente a do 156, e todas as subprefeituras para identificá-las. É algo em torno de 9 milhões de metros quadrados prioritários. Nessa gestão, sem contar essas outras parques e praças, estamos requalificando mais de 1,5 milhão de metros quadrados pelo PEC.

É por meio desse plano emergencial que a Prefeitura pode fazer essas melhorias em espaços particulares e não cobrar. Isto é, permite que o poder público faça calçadas inclusive em áreas de responsabilidade privada e não cobre para garantir a continuidade da obra, principalmente nas estratégicas para não ficar aquele picote no trajeto. Se as gestões subsequentes investirem nesse ritmo, em menos de 10 anos podemos ter todas elas requalificadas.

Paralelamente, combater o grande vilão das calçadas, as concessionárias. O poder público tem grande dificuldade de lidar com eles, não pedem autorização para fazer as obras, não têm planejamento porque as obras são sempre emergenciais, e acabam não cumprindo as formalidades para realizar obras, entregando de volta para a cidade uma calçada e ruas inadequadas, pois não fazem o reparo de forma correta.

Como tem sido esse processo?

Torquato – Está começando agora, em algumas subprefeituras de forma mais ágil, outras de forma mais lenta, mas a estratégia é fazer com que essas obras nas calçadas sejam mais perceptíveis. Estamos fazendo a nossa parte e é hora de todos fazer a sua. Inclusive com os novos padrões determinados pela Prefeitura, com grande foco no concreto moldado no local. Além da questão do padrão do material, temos cartilhas para os munícipes cuja calçada faz parte desse processo.

Todas as 32 subprefeituras têm obras já começadas. Estamos preparando uma nova licitação para ampliar esse alcance para além do 1,5 milhão de metros quadrados. O primeiro lote foram as maiores de até 1,70 de largura e agora teremos um novo edital para as mais estreitas, o que ampliará esse número.

Ainda temos cartilhas específicas para o munícipe que foi atendido pela Prefeitura, para o munícipe que deve fazer a sua calçada como acesso a residências (que muitas vezes é o que estraga a calçada) e uma maior para as empreiteiras. Essas empresas estão sendo convidadas a fazer o nosso curso de acessibilidade em calçadas pela CPA (Comissão Permanente de Acessibilidade), que funciona na nossa secretaria e é um dos órgãos mais antigos do Brasil a lidar com as questões de acessibilidade e direitos das pessoas com deficiência.

A CPA criou um curso voltado a essas empreiteiras que estão realizando essas obras, desde o meio do ano passado. Ao longo da história da CPA temos mensalmente um curso destinado a funcionários da Prefeitura e outras pessoas fora desse público.

Além das pessoas com deficiência e idosos, que outros grupos são ouvidos pela Prefeitura?

Torquato – Gente que caiu na rua. Dados que temos sobre as quedas em calçada são alarmantes, é questão de saúde pública. Um estudo feito há algum tempo pelo HC da USP mostrou que as calçadas são responsáveis por quedas de uma em cada cinco vítimas atendidas pelo hospital.

Estima-se que 100 mil acidentes/ano são reportados não só com impacto físico, mas econômico no sistema (INSS, previdência e órgãos impactados pelo absenteísmo), chegando a custar R$ 600 milhões/ano. Por isso, calçada tem que ser prioridade. Não se pode perder esse valor se com investimentos menores ao longo dos anos podemos mudar esse cenário. Em relação à população idosa, é importante levarmos a percepção de importância da acessibilidade, pois é algo que não é visto como valor, não entrou na cabeça das pessoas.

Queremos aumentar esse valor, temos que preparar nossos espaços, comércios e nossas residências. É preciso avançar muito mais em termos de transporte, acessibilidade. Daqui a pouco nossa população estará mais envelhecida e a longevidade traz quase que necessariamente limitações e deficiências. Para conviver com uma sociedade mais velha é preciso ter uma estrutura mais acessível, uma lição que tem que estar na cabeça de todo mundo não só na nossa gestão. Nossas ações de acessibilidade atendem uma demanda atual, mas também são estruturantes para uma necessidade futura.

E não há punição para essas concessionárias? Como se combate isso?

Cid Torquato – Existe, mas é uma relação complexa porque temos cerca de 40 delas que usam o subsolo da cidade. Muitas delas não agem de acordo com a lei e muitas vezes a Prefeitura não consegue nem fiscalizar. Quando vai ver, o buraco já está feito e não se sabe quem fez.

Esse é um grande problema e cabe também ao munícipe nos ajudar nesse processo, via 156, o grande canal de interlocução com a prefeitura, por site e aplicativo. O munícipe tem que ser um parceiro da Prefeitura na fiscalização e denúncia desse tipo de acontecimento. É importante que ele exerça esse poder para que cuidar do que é seu, mesmo que seja no âmbito de apontar o que está errado, próximo da sua casa, do seu trabalho, na sua rota.

O 156 é a nossa forma de monitorar o que está errado e todos recebem nosso feedback. Muita gente não sabe, mas cada vez mais esse poder e essa capacidade de fiscalização tem que estar na mãos do munícipe porque a Prefeitura, mesmo com seu corpo de fiscais, não consegue “escanear” a cidade como o cidadão. A participação do munícipe é muito importante para que a gente tenha a cidade que a gente quer.

Em relação ao munícipe que tem a calçada estragada, o que a Prefeitura faz?

Cid Torquato – A Prefeitura, historicamente, sempre teve receio de acionar o munícipe com a responsabilidade de zelar pela calçada, por
ser algo impopular. Isso não acontece apenas nas grandes cidades: muitos
gestores Brasil afora têm receio de exigir calçada e acessibilidade no
pequeno comércio. Nesse processo de requalificação de mais de 1.5
milhão de metros quadrados, vamos começar a acionar esses munícipes a
adequar as suas calçadas. Estamos dando o exemplo de fazer calçadas e
fazemos a nossa parte para todos façam a sua.

A cartilha é bem clara para o munícipe adequar a sua calçada? Ele mesmo pode fazer essa readequação sem contratar uma empresa ou
um engenheiro?

Cid Torquato – Sim, obviamente vai precisar de alguma habilidade, mas pode contratar fornecedores por conta própria, a partir dessas novas informações.

De acordo com levantamento de buscas do Google, São Paulo está em terceiro lugar entre as cidades mais procuradas para o turismo. De que maneira a acessibilidade contribui para que subamos nesse ranking?

Cid Torquato – De acordo com a pesquisa do Mobilize, apesar de tudo São Paulo ainda é considerada a melhor do Brasil, especialmente porque todos os equipamentos já culturais estão adaptados. Pelo seu cenário cultural, a cidade não é só destino turístico apenas para os brasileiros.

Visitantes estrangeiros já sentiram isso e reforçando o conceito de Turismo Acessível para mostrar as opções ilimitadas de coisas para fazer para quem tem deficiência. Não falamos apenas da acessibilidade de transportes, mas de uma rede de equipamentos acessíveis que não dá para comparar com
nenhuma outra cidade do Brasil. A capital do turismo acessível é para
reforçar uma característica que São Paulo já tem, que impacta mas não é explorada dessa forma explícita.

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