Batuque de umbigada: celebração da vida, ritmo afro-brasileiro resiste no Quintal da Dona Marta
Enraizada nas tradições de negros escravizados de origem bantu, dança afro-brasileira celebra a vida e resiste em comunidade quilombola no oeste paulista
6 minutos, 11 segundos de leitura
09/09/2022
Por: Beatriz Oliveira e Mariana Oliveira, do Nós, Mulheres da Periferia
O Quintal da Dona Marta fica em Capivari, no oeste do Estado de São Paulo. Trata-se de um centro cultural que preserva o batuque da umbigada — dança de celebração à vida, à fartura e à comunidade. O ritmo de raiz africana nasceu em solo paulista, especificamente Capivari, Tietê e arredores, com a chegada de negros escravizados de origem bantu, no período colonial. Aos pares soltos e embaladas pela música, o canto e a impressionante percussão, as pessoas se movem. E resistem.
“Centro de energia e de alimentação”, diz, sobre o umbigo, a narradora do filme Batuque Umbigada Guaiá de Capivari e Quintal da Dona Marta Aquilombamento, Mulherismo e Resistência, produção do Circuito Sesc de Artes (ver abaixo). “O encontro do umbigo de um homem e de uma mulher celebra a vida, a fertilidade e o princípio da existência a partir de duas energias. A boca no ventre.”
O Quintal de Dona Marta é uma referência na manifestação afro-brasileira e tem na costureira e batuqueira Marta Joana, de 72 anos, uma de suas mestras e líderes; uma de suas fontes de história e saber. Ao ver filhos e netos perpetuarem a tradição, e esta ser valorizada pela população local, Marta fica orgulhosa. “Vou morrer dentro do batuque”, afirma. “É uma coisa que a gente faz com amor e carinho.”
Liderança local — Dona Marta teve uma vida sofrida. “Criada sem pai, que na verdade nem conheci, tive que parar de estudar”, diz. “Tudo que minha mãe queria era que eu estudasse, embora ela fosse analfabeta. Fiz do primeiro ao quarto ano. Fui para a roça, e assim me criei.”
Nascida no Paraná em 25 de julho de 1950, dona Marta Joana morou em outras cidades com a mãe antes de chegar na comunidade quilombola Capivari, onde casou, teve filhos, netos e bisnetos. E se encantou pela umbigada. Essa relação com começou por volta dos 23 anos, vendo dona Paulina, avó do ex-marido, expressar a tradição. “Eu ficava ali sentada até que um dia cansei e falei que queria dançar.” Após a separação, Marta chegou a ficar dez anos afastada do ritmo. Mas quando a mestra Anicide de Toledo, referência da região, a convidou para coordenar o batuque de Capivari, ela resolveu voltar. Isso foi há mais de vinte anos.
Resistência — Antes de ter endereço próprio, a umbigada da região era apresentada em sítios, casamentos, batizados e outras datas celebrativas, como o 13 de maio – marco da Abolição Inconclusa da Escravatura –; o 20 de novembro, Dia da Consciência Negra; e o 10 de setembro, aniversário de mestra Anicide.
Quando dona Marta Joana se tornou assessora de assuntos culturais de Capivari, a prefeitura pediu um levantamento da população negra da cidade. Foi aí que Marta teve a dimensão da importância da umbigada para a região e começou a sonhar com um espaço exclusivo para as festividades. “A gente não tinha um lugar para reunir um dia que quisesse fazer um batuque, então foi onde surgiu a ideia de colocar o meu quintal.”
O Quintal da Marta propriamente dito surgiria aos poucos. No começo, os batuques eram feitos embaixo de um bambuzal. Com a ajuda de alguns batuqueiros o terreno foi arrumado. “Puxamos um bico de luz e lá a gente se reunia e dançava”, conta a liderança. “Mas ainda estamos lutando porque falta muita coisa.” Em 2018, veio uma conquista importante: foi aprovado em edital público o financiamento para erguer um barracão. “A gente arregaçou a manga e trabalhou por três meses na construção”, diz Marta. A área próxima aos bambus foi mantida. É memória viva e atração nas festas.
A questão financeira impõe preocupação, já que todas as atividades são custeadas por editais e os cachês de apresentações. “Não temos uma renda fixa para o quintal, todo mundo aqui trabalha por fora. Recebo encomendas de roupa africana, principalmente para candomblé e umbanda, é o dinheirinho que entra. E eu sou aposentada por idade, a gente se mantém assim”, explica dona Marta.
UMBIGADA: MANIFESTAÇÃO CULTURAL E ODE À ANCESTRALIDADE
Antes do batuque de umbigada são feitos agradecimentos em roda a Deus, aos Orixás e aos que vieram antes; agradecimentos pela vida e a força para ir em frente.
“Tudo que fazemos é porque tivemos um ancestral que nos conduz e nos permite dar continuidade, então buscamos preservar essa ancestralidade”. Depois da oração, ao som de tambores, como tambu e quinjengue, da matraca e do chocalho, a mestre inicia o canto.
Os participantes fazem duas filas. Os homens cumprimentam as mulheres que estão na fila oposta, a certa distância, e voltam a seus lugares. O movimento é repetido pelas mulheres e a dança começa, sem a necessidade de um par fixo. “Não é uma dança que agarra o par, não, é livre”, explica Marta. E não há pré-requisito. “Quem gostar e tiver vontade pode entrar na roda e dançar. Estamos ali homenageando a vida, o umbigo que é nossa primeira boca, porque o feto não consegue sobreviver se não for através do cordão umbilical.”
A autonomia também está no figurino. As mulheres geralmente vestem uma saia longa e estampada com a camisa branca. Já os homens usam calça branca e blusa vermelha. A confecção fica a cargo de dona Marta. “Eles pedem, eu vou e costuro. Trabalho muito.”
Oficinas no quintal — Nos dois piores anos da pandemia de covid-19, as atividades presenciais no Quintal da Dona Marta foram interrompidas ou substituídas por transmissões virtuais. No mesmo período, a doença causada pelo coronavírus tirou a vida de muitos batuqueiros.
Com a retomada, em 2022, o Quintal passou a oferecer oficinas para as crianças aprenderem a tocar e a dançar, e desse modo transmitir e alimentar a tradição. Colocar energia no letramento das meninas e dos meninos, para que entendam sua história, origem e os significados da dança, é um modo de fazer circular saberes, formando pessoas melhores e que levarão esse conhecimento a seus pais, explica dona Marta. “As crianças não nascem racistas, mas aprendem com a convivência de cada lar. É um trabalho de formiguinha, mas com mais pessoas a gente vai conseguindo para não deixar a ancestralidade morrer. ”
O respeito aos ancestrais está conservado na nomeação de mestras e mestres, dando prioridade às pessoas mais velhas da comunidade. “Eu coordeno o batuque desde 2009 e agora é que a turma está me chamando de mestra”, conta dona Marta. “Entramos e, conforme passam os anos, aprendemos a história. Não adianta você dançar sem saber do que se trata.”
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