Novo Hospital da Mulher recebe críticas de pacientes: ‘Atendimento humanizado faz falta’
Segundo usuárias e servidores, o Grupo Técnico de Humanização criado no Pérola Byington está desaparecendo na mudança para o novo endereço
Pacientes e funcionários estão preocupados com as mudanças envolvendo o Hospital da Mulher, inaugurado em setembro na avenida Rio Branco, região da cracolândia, no centro da capital paulista. A humanização na assistência à saúde, segundo quem usa o hospital, está sendo (ou já foi) descontinuada. Duas servidoras públicas ouvidas pela reportagem, e que pediram para não ser identificadas, disseram que já houve a confirmação do fim do Grupo Técnico de Humanização dentro do hospital e as funcionárias estão se despedindo aos poucos das pacientes.
O Expresso na Perifa acompanhou por 20 dias um grupo de rede social que reúne pacientes e servidoras públicas do Hospital da Mulher. Usuárias e funcionárias foram entrevistadas. Além disso, para coletar mais informações e entender as mudanças, a reportagem ouviu as instituições que administram a nova unidade.
Com 550 metros quadrados, a unidade do Hospital da Mulher, na avenida Rio Branco, foi construída para absorver 100% dos atendimentos do Pérola Byington, que fica na Brigadeiro Luis Antônio e está sendo transferido para o novo endereço. O objetivo é fortalecer a instituição como centro de referência no atendimento a mulheres com câncer e vítimas de violência sexual ou doméstica na América Latina.
Há mudanças importantes na administração. Se antes a instituição esteve sob a gestão direta do poder público, agora o hospital é administrado por uma Parceria Público Privada (PPP) e gerenciado em duas frentes: pelo Serviço Social da Construção Civil de São Paulo (Seconci-SP), que é uma Organização Social de Saúde (OSS), e a Inova, uma empresa privada.
Isso significa que a administração foi dividida em duas áreas, as chamadas “bata cinza” e “bata branca”. A primeira fica a cargo da Inova, responsável pela estrutura física do hospital, que envolve setores administrativos, de limpeza e de segurança. É atribuição do Seconci, portanto, a gestão hospitalar e do atendimento médico (a “bata branca”).
A nova unidade foi instalada em área cedida pela Prefeitura de São Paulo. De acordo com a gestão municipal, o hospital irá “ofertar cerca de 184,3 mil procedimentos ao ano, incluindo atendimentos ambulatoriais, internação e sessões de quimioterapia, hormonioterapia e radioterapia e ampliará a quantidade de leitos para 172, sendo 10 de UTI e 60 de enfermaria”.
Afinal o que está acontecendo com o atendimento humanizado no Hospital da Mulher? — O Grupo Técnico de Humanização (GTH), no Hospital Pérola Byington da Brigadeiro, consolidou-se como referência no cuidado a pacientes oncológicas. Sua continuidade, no entanto, tem despertado dúvidas no processo de transferência de atendimento para o Hospital da Mulher.
Formado por funcionárias e voluntários, a função do GTH é promover ações de autoestima e apoio a pacientes, a exemplo de aulas de dança, o popular Desfile da Primavera, a aplicação de reiki, a apresentação de mágicos e palhaços e a doação de itens, como lenços. Foi criado, por exemplo, um “cantinho da beleza”, onde pacientes recebem maquiagem e esmaltação das unhas, e o “cantinho da Rapunzel”, que incentiva a doação de cabelos, faz a coleta e confecciona perucas para presentear pacientes oncológicas.
Além dos “cantinhos”, as voluntárias estão em diferentes setores, como na sala de quimioterapia, oferecendo chá, café ou um simples abraço para estimular o tratamento.Psico-oncologista, fundadora e presidente do Instituto Oncoguia, Luciana Holtz afirma que o serviço de humanização melhora a qualidade de vida, o bem-estar e impacta na saúde emocional das pacientes. “A humanização é a base de qualquer cuidado que queremos oferecer. É o que permite e prioriza o olho no olho, um abraço apertado e mais: que escuta e incorpora o que importa para o paciente”, diz Luciana.
O que dizem as pacientes que conhecem o atendimento do Pérola Byington? — Diagnosticada aos 59 anos com câncer no ovário, Shirley Brandino tem presente na memória as ações do grupo de humanização quando iniciou seu tratamento no Pérola Byington há sete anos. Hoje, aos 66 anos, em tratamento de câncer pela segunda vez, Shirley destaca a importância da humanização no equilíbrio emocional e na autoestima. “Você está careca, sem sobrancelhas, sem cílios, está desconfigurada para certas pessoas. E ter a oportunidade de ser acolhida no hospital, de colocar cílios postiços ou fazer uma sobrancelha de hena aumenta a nossa autoestima. Um estímulo desse levanta e dá expectativa de vida a quem está arrasada psicologicamente. O tratamento partindo do psicológico potencializa a cura.”
Para Erika Casarini, a descoberta de um câncer de mama foi um pouco mais cedo, aos 38 anos. Após seis anos de tratamento, ela também traz boas lembranças do acolhimento que teve no Pérola Byington. “As pessoas do grupo de humanização têm um coração gigante. Elas organizam desfiles em parcerias com faculdades, dão cursos. Eu ganhei uma peruca no hospital. Esse cantinho é muito importante, ainda mais pelas fases que passamos de perder o cabelo, com a autoestima lá embaixo. Esse cantinho é o que leva as mulheres a ter força para continuar lutando e saber que logo estarão boas.”
Shirley, assim como Erika, defende a continuidade e a ampliação do Grupo Técnico de Humanização no novo hospital. “Primeiro, não admito que falem mal do SUS [Sistema Único de Saúde]. Tive um atendimento completo e humanizado lá. Você não é só uma paciente, é um ser humano que precisa de carinho, de atenção. E além de você, toda a sua família está fragilizada. Queremos transparência para saber se o grupo de humanização continua.”
Paciente há sete anos, Maria Rodrigues soube do diagnóstico do câncer de mama em 2015. Aos 60 anos de idade, formada em Psicologia, mestre em Saúde Coletiva e com uma experiência de 35 anos em políticas públicas, vive agora a transição dos atendimentos entre um hospital e outro. Maria traz como recordação o 1º andar do prédio do hospital Pérola Byington, na Avenida Brigadeiro Luís Antônio, na Bela Vista, onde acontecem as consultas com os mastologistas antes das cirurgias.
“As paredes têm quadros com frases de superação e fotos de mulheres que passaram pelo câncer. No local, um banner explica o passo a passo, da hora que você chega lá até o que pode acontecer com você, dependendo de como for sua lesão. Algumas frases pintadas na parede não são só frases de positividade, mas nos remetem para a possibilidade de cura. É um lugar de acolhimento”, afirma.
Segundo Maria, o hospital localizado na avenida Rio Branco não transmite acolhimento. “As paredes do novo hospital estão vazias. É um salão imenso de cor bege com um monte de cadeiras. Nada lá nos remete a um lugar acolhedor como o que temos ainda na Brigadeiro. Não é mera decoração. É um processo de humanização que se coloca de várias formas, não só no atendimento de funcionários e voluntários, mas no ambiente. Tínhamos um espaço onde as mulheres se reconheciam em sua dignidade”, lamenta.
O que muda com a parceria público-privada? — Aos relatos das pacientes Shirley, Erika e Maria se somam reivindicações do Sindicato dos Trabalhadores Públicos da Saúde no Estado de São Paulo (SindSaúde-SP), que sinaliza preocupação com as alterações dentro da nova unidade e com a transparência de informações durante as mudanças.
“Temos feito protestos na frente do hospital, ouvimos as pacientes e os trabalhadores no local de trabalho. Hoje existe uma atuação importante no sentido de humanizar o atendimento, mas isso pode mudar. Nessa PPP, o espaço físico fica com a Inova, que também cuida das lojas que serão colocadas lá para comercialização”, relata o dirigente sindical Paulo Antônio Marques de Moura, funcionário do Pérola Byington. Dois cafés já começaram a funcionar dentro do prédio do Hospital da Mulher e, ainda segundo Moura, outros pontos comerciais serão alugados em breve. “Essas lojas vendem produtos com preços inacessíveis a pacientes de baixa renda. Muitas vezes, elas não têm dinheiro nem para um café vendido na parte de fora por R$ 3 por uma ambulante”, afirma. “Existem ONGs que atuam no Pérola Byington e fazem doações de cabelo e de lenços. Estamos acompanhando pessoalmente a transição e temos ouvido até mesmo sobre o aluguel de uma loja para vender perucas às pacientes. Perucas que hoje são produzidas por voluntários e doadas a pacientes pobres. Imagina ter que cobrar por isso.”
O Hospital da Mulher só atende pelo SUS. Na avaliação de Moura, como o SUS segue uma linha de pensamento na qual a saúde é vista como direito de todos, é preciso ter cuidado para que a parceria público-privada não comprometa a atuação alinhada à Política Nacional de Humanização criada no Brasil em 2003. “Mesmo com o serviço ainda acessível à população, gratuito, é importante lembrar que a PPP passa a ter gerência de empresa privada e o direito previsto pelo SUS terá também a interferência de uma lógica liberal, voltada ao lucro. E o atendimento humanizado corre risco”, pontua.
Moura defende um olhar humanizado que leve em consideração o perfil econômico e social das pacientes. “Não faz sentido, por exemplo, o fim de um grupo de humanização que tem dado certo e o encerramento de atividades de ONGs que doam perucas, lenços e bolsas de tecidos customizadas para as pacientes colocarem as bolsas de colostomia para não ficarem à mostra. São doações feitas para mulheres que em sua maioria são de baixa renda e moradoras de periferias.”
O QUE DIZ A INOVA SAÚDE
Sobre a parte de infraestrutura e comercialização, a Inova Saúde afirma que foram realizadas pesquisas internas baseadas em demandas e necessidades das pacientes oncológicas que são atendidas pelo novo Hospital da Mulher. “A Inova Saúde irá implantar, dentre outros, comércio de artigos dedicados exclusivamente para a qualidade de vida de pacientes oncológicos, com a oferta de produtos como perucas e lenços no casarão, ao lado do novo prédio do Hospital.”
O QUE DIZ A SECONCI-SP
Em relação à continuidade dos trabalhos, a OSS afirma que o “Grupo Técnico de Trabalho tem sua existência prevista no novo Contrato entre Secretaria da Saúde e Seconci-SP.”
→A informação foi checada pela reportagem no Portal da Transparência da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, no contrato de gestão nº 13285, de 2022. No documento, não foi encontrada nenhuma anotação específica sobre o Grupo Técnico de Humanização, nem atividade similar entre as obrigações assumidas pela OSS referentes ao atendimento ambulatorial.
A reportagem perguntou sobre as principais ações realizadas pela equipe do Grupo Técnico de Humanização no acolhimento a mulheres ao longo dos últimos anos. “Não sabemos. Esta e outras questões estão no Pérola e não sabemos”, respondeu a OSS que passou a fazer as gestões médica e hospitalar na nova unidade.
Também foi perguntado se haverá o encerramento de atividades envolvendo ONGs e voluntários na nova unidade. “Essa informação não se aplica. O próprio Seconci-SP tem parcerias com entidades diversas através do Iepac [Instituto de Ensino e Pesquisa Armênio Crestana].”.
→O Iepac é uma organização criada pela própria Seconci-SP em 2007. Até a finalização da matéria não tivemos resposta sobre o nome das entidades parceiras.
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