“Usar carro particular precisa ser penoso”
Para pesquisador em mobilidade da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), governos precisam fazer com que pessoas de todas as classes sociais optem pelo transporte público
6 minutos, 36 segundos de leitura
02/03/2022
Por: Daniela Saragiotto
O que a pandemia trouxe de transformações na mobilidade urbana? Quais delas vieram para ficar e quais se enfraqueceram? E o que será fortalecido em 2022? Para entender um pouco mais sobre o tema, conversamos com Victor Andrade, fundador e diretor do Laboratório de Mobilidade Sustentável (Labmob), vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Urbanismo (Prourb), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Ele falou ao Mobilidade sobre a necessidade de investimentos consistentes em transporte público coletivo, o protagonismo da bicicleta na pandemia, a volta de micromodais, como o patinete, e o que podemos celebrar em conquistas de mobilidade ativa. Confira, a seguir.
Que mudanças você acha que a pandemia trouxe à mobilidade?
Victor Andrade: Por enquanto, não temos dados suficientes para falarmos de transformações concretas, pois ainda estamos no meio desse processo. Nas universidades, estudamos as hipóteses, e existem várias, algumas até divergentes entre si. O que sabemos é que houve um impacto muito grande no transporte coletivo, no Brasil e no mundo.
Por aqui, o sistema já era deficitário e só piorou no período, perdendo passageiros pela migração para outros modais, por pessoas que o evitaram por receio e até pela prática do home office. E a maioria das cidades não conseguiu voltar ao nível de passageiros que tinha no período pré-pandemia, colocando o sistema em uma situação muito frágil e o preço das passagens impactando muito na renda das famílias. E o que sabemos é que não existe solução para os desafios de mobilidade das nossas cidades sem investimentos consistentes no transporte público coletivo.
Outro dado que vivenciamos foi a explosão de vendas de bicicletas, um aumento acentuado na procura por esses equipamentos que persiste. E, por fim, destaco um outro movimento forte, que não é exclusividade do Brasil, mas que aparentemente veio para ficar, que é a logística de última milha.
Passamos por uma espécie de “janela de oportunidade” na pandemia, em que diversos países reforçaram outro padrão de mobilidade e de estilo de vida, investindo em ciclovias, em infraestrutura de calçadas, abrindo espaço nas cidades para os pedestres. Mas, infelizmente, no Brasil, nós não fizemos isso, até pela morosidade dos nossos sistemas de decisão para viabilizar essas transformações nas políticas públicas e na infraestrutura urbana.
No transporte público, quais os caminhos para que o sistema saia da crise e volte a atrair passageiros?
Andrade: Vivemos em um espaço público que é disputado por todos. E ele é usado de uma forma muito desigual, e isso já mostra uma inversão de prioridades, com foco no transporte individual. Enquanto não priorizarmos o transporte público de massa, especialmente os de média e alta capacidade, quem puder escolher o individual o fará: e isso não é uma questão de a pessoa ser boa ou ruim – são padrões de comportamento.
Então, cabe ao governo fazer com que a escolha pelo transporte individual seja penosa, seja mais difícil, para que as pessoas migrem para o transporte coletivo e para que ele passe a ser usado por todas as classes sociais. De uma forma sistêmica, o viário de nossas cidades foi desenhado para o carro: nossa capital, Brasília (DF), é o maior exemplo – ela celebra o automóvel.
Outro desafio que temos no sistema é a baldeação, a intermodalidade entre o ônibus, o trem e o metrô, e indica a necessidade de investimento, porque os usuários precisam ter conforto e previsibilidade. São Paulo está à frente das demais cidades brasileiras, mas esse é um tema muito complexo, que envolve a integração com o Bilhete Único, a mobilidade ativa, a questão dos paraciclos, pois as bicicletas compartilhadas precisam ser entendidas como parte do sistema de transporte público.
E, por fim, menciono a eletrificação dos ônibus, que traz benefícios não apenas aos usuários do sistema, mas tem impacto positivo na saúde da sociedade e no clima. Como esses, existem diversos outros desafios para que tenhamos um transporte público integrado, mais democrático e que atenda, de fato, a população.
E os micromodais, especialmente os patinetes, qual o papel desses equipamentos na modalidade urbana?
Andrade: Nesse período, houve um movimento de ruptura desses sistemas de compartilhamento, um fenômeno global, marcado pela debandada dessas empresas. Isso tudo por causa de um problema de sustentabilidade econômica do modelo de negócios, que era muito novo, com muitos riscos e baseado no sistema de dockless, praticamente desconhecido por aqui. Então, veio a pandemia, e agravou a situação.
Hoje, esses sistemas estão voltando e, além disso, a venda desses equipamentos particulares está quase tão acelerada quanto a de bicicletas. Mas esse micromodal volta, na minha opinião, principalmente, à logística de última milha, de entregas, mas com um perfil distinto do da bicicleta, atendendo a todo tipo de público, pois os micromodais não concorrem entre si.
Mas, de uma maneira geral, acompanhando os dados disponíveis e as vendas do varejo, observamos a volta dos patinetes.
Em relação aos automóveis particulares, o que podemos destacar atualmente? As pessoas estão deixando de usar o carro?
Andrade: Dados da indústria mostram que houve queda nas vendas, durante os períodos mais críticos da pandemia, pela paralisação nas montadoras. Mas, em 2021, observamos aquecimento na comercialização dos carros usados. E, se analisarmos os dados de uso das vias nas cidades, notamos o mesmo fluxo de tráfego de veículos da época pré-pandêmica; então, ainda não conseguimos visualizar nenhuma mudança.
O que sabemos é que existe uma grande parcela da população que não atingiu poder aquisitivo suficiente para adquirir seu automóvel. No último boom econômico que o Brasil viveu, no século 21, no ano 2010, percebemos as melhoras da situação financeira, com as pessoas comprando motocicletas ou migrando para os automóveis.
Agora, com a retração econômica, podemos perder a oportunidade de valorizar outros modais, menos poluentes e mais sustentáveis, antes do próximo aquecimento econômico. Uma coisa muito interessante é que houve mudança de paradigma, pois existe maior compreensão da mobilidade como um serviço, com o automóvel como um vetor desse processo. E todos entendendo que há uma cadeia enorme, que incluiu fornecedores de peças, concessionárias, o que é muito custosa.
E, para diluir tudo isso, existe um movimento mundial de compartilhamento ou mesmo de assinatura de carros que indica uma mudança cultural muito positiva e necessária.
Qual o papel que a mobilidade ativa ocupa em nossa sociedade? Há alguma iniciativa para incentivar esse modal tão importante, especialmente o andar a pé?
Andrade: Tivemos alguns avanços nesse sentido, mas, embora sejam lentos, precisam ser celebrados. Um destaque é a abertura da Av. Paulista a pedestres, uma medida que reverbera nas cidades do País inteiro, inspirando municípios de todos as regiões do Brasil.
Já é sabido que infraestruturas que promovem a mobilidade ativa tendem a vitalizar, economicamente, a região, e já temos dados brasileiros que comprovam o impacto positivo desse modal na economia local e na saúde das pessoas.
Então, investir em infraestrutura de calçadas e em iniciativas que promovam acesso de todas as camadas da população às cidades precisa ser incentivado e fortalecido cada vez mais.
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