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Amigas, sim; que discordam, também

Por: Jéssica Moreira, Nós, Mulheres da Periferia . 25/02/2022

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Amigas, sim; que discordam, também

Em um mundo onde nós, mulheres negras e periféricas, temos pouco espaço para nossas vozes e errâncias, debater pontos de vista diferentes sem ser agredida também é sinônimo de segurança e acolhimento

4 minutos, 21 segundos de leitura

25/02/2022

Por: Jéssica Moreira, Nós, Mulheres da Periferia

Linn da Quebrada tira as tranças no BBB22. Foto: reprodução/TV Globo

Falar sobre amizade em contexto de reality show é sempre difícil, né? Mesmo com todas as trocas de afeto, trata-se de uma competição valendo R$ 1,5 milhão. Na 22ª edição do Big Brother Brasil (BBB) não é diferente. Mas tem um trio que merece nossa atenção: Natália, Lina e Jessi.

Desde o começo do programa, as três vêm se aproximando, mas não sem conflitos. Há discordâncias em relação às estratégias de jogo e até sobre a forma de condução das outras relações com brothers e sisters.

Jessi entregou o jogo de Lina a Douglas Silva, o DG. Natália já chegou a desconfiar da fidelidade de Lina em relação à votação. E tanto Lina quanto Jessi levantaram placas criticando Natália durante o jogo da discórdia no qual Natália foi agredida pela ex-sister Maria, expulsa no dia seguinte.

Mesmo com esses desafios, elas se mantêm juntas. Ficam chateadas umas com as outras, sim e não escondem. Pelo contrário, tratam com honestidade suas diferenças, se ouvem e continuam sendo lugares de afeto e acolhimento uma para outra dentro da casa.

A relação do trio me fez refletir sobre as grandes amizades que me acompanham. São pessoas com quem tenho profundo respeito, admiração e carinho. São mulheres que expõem sua opinião e não abrem mão do debate. Falam sobre futebol, política, vida amorosa ou problemas familiares.

Trabalhamos juntas e defendemos nossos ideais, principalmente enquanto mulheres negras e periféricas. Pouco a pouco, aprendemos a nos colocar no mundo, verbalizar nossos sonhos e medos, e não permitir que alguém se antecipe e faça isso por nós.

Tudo isso faz com que tenhamos opiniões e posicionamentos bem contundentes sobre o que nos afeta. Mas é importante dizer que, mesmo vindo de lugares e contextos parecidos, não somos iguais. Cada uma carrega sua trajetória, traumas e verdades.

Escutar com cuidado é um aprendizado contínuo e permanente. É preciso ter o mínimo de empatia para tentar entender as subjetividades do outro e como as coisas podem atravessar as pessoas de formas distintas. Mas ninguém, nem mesmo a sua melhor amiga, está imune a falhas. E que bom.

Em um mundo onde nós, mulheres negras e periféricas, temos pouco espaço para a nossa voz ou para nossas errâncias, poder discordar de uma amiga sem ser agredida também é sinônimo de segurança e acolhimento.

Faz quase três anos que um dos meus melhores amigos morreu. José Soró era um articulador e educador de Perus, na região noroeste de São Paulo. Certa vez, discutimos em uma reunião do movimento que ambos faziam parte. Saímos do espaço e tomamos juntos uma pinga. Na volta para casa, ele disse: a sua geração tem medo de conflito, mas o conflito é importante

O tema da minha pesquisa de jornalismo foi uma greve que durou sete anos na periferia de São Paulo em meio à Ditadura Militar. Já contei sobre isso nesta reportagem. Apelidados de Queixadas, os operários da Companhia de Cimento Portland Perus utilizavam o conceito de não-violência, conhecido por aqui como firmeza-permanente.

A Firmeza-permanente não é sobre omissão, tampouco sobre violência física. O advogado Mário Carvalho de Jesus, que trouxe o conceito para Perus, dizia que “o importante não é a gente ser valente ou violento de vez em quando, mas firme o tempo todo, a vida toda, em todas as atitudes, na família, na fábrica ou na sociedade”.

Vivemos em um mundo que teme tanto o conflito e debate de ideias diferentes, que as ideias ditatoriais e uníssonas tomam conta do espectro social e político muito mais que a diversidade e pluralidade de vozes.

O Nós, Mulheres da Periferia foi criado por nove mulheres. Hoje, somos seis sócias, sete gestoras, e, ao todo, 16 mulheres trabalhando para contar as histórias de outras mulheres. Construir um veículo de mídia com modelo horizontal não é fácil e nada romântico.

Mas a potência está exatamente aí. Aqui, não há Ditadura, ideia única, único formato ou caminho. Muitas vezes, temos conflitos: de ideias, de estratégias, de como seguir e continuarmos sendo muito boas no que nos propomos fazer: um jornalismo de memória, feito entre mulheres que são amigas e falam para outras amigas também.

Mas vivemos em um mundo que teme tanto o conflito e debate de ideias diferentes, que falar que existe um espaço como o Nós parece até uma utopia. As ideias ditatoriais e uníssonas ainda tomam conta do espectro social e político muito mais que a diversidade e pluralidade de vozes, infelizmente.

Quando Lina, Jessi e Natália discordam na casa mais vigiada do Brasil, me traz a tranquilidade de que há humanidade entre elas. Que, mesmo em uma casa tão cheia de picuinhas, há um espaço seguro onde é possível brigar, discordar e ainda assim continuar amando uma pessoa. Amigas sim, que tretam também.

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