Copresidenta da Central Única das Favelas quer ver mais mulheres no poder
A paraibana Kalyne Lima diz que se ocupa mais em produzir trabalho ‘impossível de ser ignorado’ do que disputar protagonismo
A jornalista, multiartista e executiva social Kalyne Lima, de 40 anos, acredita que sua primeira militância foi ter nascido mulher, nordestina e periférica. Sem poder passar despercebida, quando se revelou artista trouxe na escolha do nome uma forma de marcar presença. Registrada como Sandra Kalyne de Barros, ela conta que optou pelo Lima, sobrenome da mãe, para deixar claro de qual lado estava depois de passar anos como testemunha de violência doméstica.
O pai, um policial reformado, saiu de casa quando ela tinha sete anos. Entre eles prevalece o distanciamento, sem sinais de afeto. Com o pai de sua filha de 16 anos, outro homem ausente da vida familiar, a situação é a mesma.
Foi no feminismo e na cultura hip-hop que Kalyne encontrou uma maneira de fazer suas palavras ecoarem. Nascida e criada em João Pessoa, capital da Paraíba, aos 16 anos já integrava organizações ligadas aos movimentos sociais. Na música e no grafite, por sua vez, descobriu que tudo funcionava dentro da mesma batida. “Sou de uma geração que viveu o hip-hop como movimento sociocultural e isso vai me norteando em todos os aspectos da vida. Quando fui cursar jornalismo, era uma mulher de periferia num curso que é elitista, não havia mais ninguém que pegava o mesmo ônibus que eu para ir para casa”, lembra. Todos os dias Kalyne saía do bairro de Gramame, na periferia da capital paraibana, para estudar na universidade federal.
O contato com a cultura abriu muitas portas que levaram a movimentos convergentes. A música dialogava com as lutas das mulheres, das pessoas LGBTQIA+ e de negros, em um processo de enriquecimento do discurso responsável também por unir pessoas.
Na luta contra o racismo Kalyne conheceu Preto Zezé, atual presidente global da Central Única das Favelas (Cufa). O termo “global” não é ao acaso: a organização não-governamental está presente em 5 mil favelas de 500 cidades e em 17 países.
Nosso segredo é ser poliglota, falamos ‘favelês’ e a linguagem do asfalto. Como somos resultado da pluralidade, de certa forma, não há tecnologia que desconheçamos e isso é resultado da nossa base plural (Kalyne Lima, copresidenta da Cufa)
Kalyne foi a responsável pela fundação da unidade na Paraíba, após o convite de Celso Athayde, um dos idealizadores da Cufa. Isso foi em 2008. Segundo ela, a ONG é uma escola que ensina a falar muitos idiomas. “Nosso segredo é ser poliglota, falamos ‘favelês’ e a linguagem do asfalto. Como somos resultado da pluralidade, de certa forma, não há tecnologia que desconheçamos e isso é resultado da nossa base plural”, explica a atual copresidenta da entidade.
O Núcleo de Mulheres da Cufa estima que somente o trabalho delas foi responsável pela ajuda a 3,5 milhões de famílias em situação de vulnerabilidade durante a pandemia de covid-19. De acordo com uma pesquisa do Data Favela em parceria com o Instituto Locomotiva e a Cufa (março de 2021), 71% das famílias moradoras de favelas perderam metade da renda e 80% não teriam condições sequer de se alimentar, se não recebessem doações.
Oralidade — As atribuições à frente da Cufa não afastaram Kalyne do rap, da cultura hip-hop que é fundamental em sua vida. Ao lado de Preta Langy, Camila Rocha e do DJ Pedro Regada, ela comanda o Sinta a Liga, que já se apresentou em festivais importantes do País, como o Abril Pro Rock, no Recife, e em programas como o Manos e Minas, na TV Cultura.
Mas quando a banda estava prestes a alçar voos maiores, a pandemia bateu à porta e as MCs Preta Langy e Camila Rocha tiveram de concentrar energias em um empreendimento da área de beleza que haviam acabado de inaugurar. O primeiro álbum, Sinta a Dzord, teve de ser adiado.
Campo minado — Mais do que uma banda de rap, a banda Sinta a Liga expõe ideias de artistas feministas paraibanas; o desejo de contar a história do movimento no estado deu origem ao livro Campo Minado: Mulheres do Hip Hop, publicado em 2018 pela editora Novas Edições Acadêmicas. O trabalho inspirou a produção de um clipe, um festival de bandas femininas e traduziu um conceito criado coletivamente pela Sinta a Liga e que atribui um novo significado à expressão que dá titulo ao livro.
“Como não há um registro oficial sobre as mulheres do rap em nosso Estado, esse livro foi construído a partir da memória e da oralidade das entrevistadas. O nome vem da ideia de que nos sentimos em um campo minado ao ser mulher no Brasil. Ainda mais num Estado como a Paraíba, que está entre aqueles com mais casos de feminicídio”, explica Kalyne.
Segundo o Núcleo de Análise Criminal e Estatística da Polícia Civil, em 2021 a Paraíba registrou 30 casos de feminicídios
Assim, a expressão “campo minado” foi ressignificada para mostrar que agora determina a ocupação pelas minas de todos os campos. Para Kalyne, uma filosofia de vida que norteia a própria atuação e que inclui a ampla participação das mulheres em espaços de poder.
Em ano eleitoral, ela recomenda que as eleitoras estejam atentas às candidatas, principalmente do campo progressista. Porque o antídoto à discriminação, acredita, é o crescimento coletivo. “Estou muito mais preocupada em produzir um trabalho que não possa ser ignorado, do que em disputar um protagonismo”, afirma Kalyne. “Ele virá, será inevitável que venha, mas estou focada em fazer da melhor forma e para que seja algo coletivo, junto com quem pensa e sente o mesmo que eu.”
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