‘Foi um manifesto político’, diz artista da MileLab sobre São Paulo Fashion Week
Marca do Grajaú, em São Paulo, faz uma retrospectiva da última edição do mais importante evento de moda da América Latina
No dia 20 de novembro de 2021, a 52ª edição da São Paulo Fashion Week (SPFW) fez história. Só estilistas negros se apresentaram, entre eles a marca MileLab, da paulistana Milena Nascimento, a Mile, de 23 anos. A cultura da periferia foi parar na passarela.
Os desfiles da São Paulo Fashion Week são muito importantes para os profissionais e para o mercado. O evento é o mais importante acontecimento de moda do Brasil e da América Latina, além de ser a 5ª maior semana de moda do planeta, atrás de Paris, Milão, Nova York e Londres.
Naquele 20 de novembro, o espaço que costuma ser tomado por pessoas brancas e magras transformou-se em lugar de pessoas pretas e faveladas que desfilaram no passinho funk. A MileLab foi uma das oito marcas contempladas pelo Sankofa, um projeto da SPFW que durante três anos oferece mentoria e suporte a negócios de pessoas negras no mercado da moda.
Na passarela
A MileLab atua com moda dentro do segmento do streetwear [roupas para situações casuais]. A sede fica no Grajaú, periferia da zona sul de São Paulo. A partir de seu trabalho, Mile busca o reconhecimento do corpo periférico em todos os ambientes. É assim que expressa sua luta e conta, do seu jeito, o que história e ancestralidade representam na moda marginal.
O nome da coleção apresentada na SPFW é Fluxo Milenar. No dia do evento, a fala de Mile levou para o debate a importância de questionar a representatividade. “De que adianta abrir as portas deste espaço, quando mesmo com todo dinheiro e recurso você prefere não garantir a permanência desses corpos pretos periféricos e marginalizados?”, afirmou.
Para a passarela, a MileLab levou elementos dos espaços periféricos que estão na raiz da marca. O público viu cabelos crespos de diversos formatos e penteados, modelos com anéis, colares e óculos usados por funkeiros e pipas gigantes da Miltão Pipas (também do Grajaú) grafitadas pelo artista Cauã Bertoldo.
“Foi muita terapia, muitas conversas com o coletivo da marca para podermos alinhar de que forma poderíamos falar e ser ouvidos por tudo que passamos nesse tempo. Tendo que lidar diariamente com o medo, pois sabíamos que estaríamos expondo nossos corpos e nossas vulnerabilidades nesse momento”, lembra Milena.
Diversas pessoas pretas e periféricas participaram da produção para que o desfile fosse histórico. Uma das atrações foi a poesia do multiartista Bruno Luan, de 25 anos, durante a abertura. “Deixe que nós contemos nossa história. Minha moda não é só mais uma, meu conceito é de rua e isso vocês não vão entender. São os favelados, se acostuma”, avisou. “Não mudo minha postura. Estou aqui para mostrar o que vocês queriam esconder”. Ao ser perguntado sobre a experiência, Luan se diz realizado. “Não pelo espaço, e sim pelo fato de que nós, novamente, chegamos ali como um coletivo e cientes da nossa grandeza para com as outras pessoas”, comenta.
Pedro Comuana, de 21 anos, desfilou no dia. Morador de Pirituba, na zona norte, Comuana diz querer as pessoas pensando para além da questão estética e da beleza. “É importante que elas também entendessem que ele foi um manifesto político. Nesse sentido, lembrar de toda potência que foi levada e de cada pessoa alí que deve ser reconhecida em vida.”
Artista visual, designer e modelo, Vic de Carvalho, 29, diz que a passarela foi um espaço acolhedor. Além de estar perto de amigos e familiares, pôde questionar qual o lugar da periferia ali. “Chega dessa parada de as pessoas acharem que a gente só tem que ficar na margem, nós não tem que ficar na margem, não, parça”, emenda.
Nós moramos na quebrada sim, que é um lugar de amor, de afeto, muito rico de potência no Grajaú, mas não só, nas outras quebradas também. Pessoas que buscam pelo menos uma oportunidade para fazer a diferença e, mesmo quando não têm, fazem
Victoria de Carvalho, artista visual da MileLab
O modelo João Paulo Martins, de 22 anos, entrou na passarela vendado. “Aquilo significava como a sociedade enxerga a gente. Ao tirar a venda, quis passar que eu quero crescer, ser alguém. Ter feito parte disso foi muito importante para mim”, afirma.
O projeto foi colocado em prática na base do esforço coletivo, sem qualquer outro tipo de apoio ou recurso, afirma Ítalo Augusto, 24 anos e social mídia da marca. “Entendemos que já temos o que precisamos, como conhecimento, garra e coragem. Não é qualquer marca que faria o que fizemos”, comenta. “Estava lá com toda a minha família e amigos. Depois de tanto tempo frequentando aquele lugar, pela primeira vez eu senti que ele era meu, era nosso. E isso só foi possível porque a gente teve coragem para fazer acontecer.”
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