Lugar de criança deveria ser na rua, mas é perigoso. Dá para mudar a realidade?
Conversamos com famílias e especialistas para entender como é o brincar nas periferias, e o que precisa melhorar
4 minutos, 18 segundos de leitura
01/10/2021
Por: Eduarda Nunes, do Favela em Pauta; e Juca Guimarães
Anna tem 7 anos e mora em Peixinhos, um bairro de Olinda, na região metropolitana de Pernambuco. Não fosse o medo da violência sentido por sua mãe, a educadora social Gal Ribeiro, a criança cresceria brincando livremente nas ruas da comunidade. Gal tem 25 anos e quando era pequena presenciou e viveu abusos e violações por parte de policiais – a falta de confiança na instituição a acompanha até hoje e influencia a criação de sua filha.
O contato de Anna com outras crianças se dá principalmente nos projetos sociais dos quais participa, ao lado da mãe, e que são oferecidos por organizações da sociedade civil, a exemplo do Centro Cultural Cambinda Estrela e do Grupo de Apoio Mútuo Pé no Chão, que fazem o papel do Estado ao oferecer acesso à cidade, ao lazer e à cultura. Essas organizações atuam há mais de 20 anos proporcionando referências de dança, música e cultura afro-brasileira para crianças, adolescentes e seus familiares, ressignificando também o espaço urbano. Pedagoga e educadora social, Rafaela Gomes conta que além da interação com as atividades de arte e educação que os espaços oferecem, existe também uma dinâmica de cuidado entre as crianças. “Elas veem como a gente (adultos) cuida delas e vão reproduzindo entre si. Ajeita o cabelo, a roupa, pergunta se tomou água.”
Outras cenas da periferia
A professora Graciele Santos de Andrade, 35 anos, tem quatro filhos com idades entre 9 e 14. A família vive no Jardim Felicidade, zona norte de São Paulo. “A gente sente falta de hospital, praças e parques para as crianças. O que fica mais perto está no Jaçanã e precisa pegar ônibus para chegar”, diz. São 15 minutos de viagem.
“Falta uma pracinha cheia de brinquedos e uma livraria”, afirma Bruno, filho mais novo de Graciele. “No meu bairro, o que eu não gosto são as brigas, as ladeiras e ter que pegar ônibus”, diz o menino. Bruno, frequentou creche e Escola Municipal de Educação Infantil (Emei), mas não tem muita experiência do livre brincar por causa da falta de estrutura.
No meu bairro, o que eu não gosto são as brigas, as ladeiras e ter que pegar ônibus. Bruno, 9 anos, morador do Jardim Felicidade (São Paulo)
Poeta e ativista da cultura em Guarulhos, na região metropolitana de São Paulo, Alex Faixas mora no bairro Jardim Palmira e é testemunha há 36 anos da infraestrutura deficitária para a primeira infância. “Precisava ter praças mais limpas e iluminadas, com bases da polícia e espaços públicos para projetos culturais”, diz. Um de seus filhos, Gustavo Carvalho, de 9 anos, lembra que aos 6 não podia ir à praça. “Gostava de jogar bola e andar de bicicleta, mas tinha uns meninos que usavam drogas. Então a gente não podia brincar”, conta o garoto.
Gostava de jogar bola e andar de bicicleta, mas tinha uns meninos que usavam drogas. Então a gente não podia brincar. Gustavo, 9 anos, morador do Jardim Palmira (Guarulhos)
Além da primeira infância
Unesco, Unicef e ONU são alguns dos organismos internacionais que historicamente ressaltam a importância de fortalecer famílias e comunidades para melhorar as oportunidades de desenvolvimento de crianças em situação de vulnerabilidade, que vivem em um cenário de pobreza e são afetadas por crescimento urbano exacerbado.
O prejuízo para a infância e a vida adulta, causado pela ausência de atuação do poder público na assistência básica e nos investimentos em ambientes lúdicos e seguros, não é pequeno.
“A atividade principal de uma criança é brincar”, diz o psicólogo Everton Mendes, especialista em questões étnico-raciais e criador do projeto Pluriversais, que elabora estudos e oficinas sobre paternidade, família, masculinidade e afrocentralidade. Mendes explica que durante as brincadeiras as crianças desenvolvem autonomia, respeito, entendimento de regras e de socialização, bases para as competências no futuro.
Quando as crianças são sabotadas nesse processo [de brincar], as consequências são amadurecimento precoce, timidez, dificuldade de relacionamento e prejuízos nas funções motoras e cognitivas.
Everton Mendes, psicólogo especialista em questões étnico-raciais
A mudança de direção para evitar um futuro trágico, alerta o especialista, precisa ocorrer na chamada primeira infância (dos 0 aos 6 anos). Por isso é tão importante a relação saudável e dinâmica com o bairro. Se a qualidade pedagógica e educativa do ambiente em que a criança está inserida é boa, seu repertório de possibilidades para a vida adulta é ampliado positivamente.
Por outro lado, a proximidade de crime, violência e tráfico faz com que muitos indivíduos, na adolescência, enxerguem esse tipo de coisa como opção. “Aumentar espaços públicos com teatro, dança, saraus, esporte, informática, moda, literatura autoriza as crianças a buscar caminhos diferentes dos que estão postos”, diz Mendes.
Quer uma navegação personalizada?
Cadastre-se aqui
0 Comentários