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Parte das comunidades para tratar usuários impõe religião e tem viés manicomial

Por: Estadão Conteúdo . 28/07/2022

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Parte das comunidades para tratar usuários impõe religião e tem viés manicomial

Custeadas com dinheiro público, instituições com forte presença de religiosos possuem irregularidades quanto ao tratamento dos dependentes

5 minutos, 45 segundos de leitura

28/07/2022

Por: Estadão Conteúdo

O tratamento de dependentes químicos realizado nas comunidades terapêuticas reforça o viés religioso, contrariando as políticas em vigor desde 2003. Foto: TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO CONTEÚDO

Com reportagem de Fábio Grellet

Uma pesquisa divulgada na segunda-feira, 25, pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) critica duramente as comunidades terapêuticas (CTs) – entidades que recebem dependentes químicos para tratamento – no Estado do Rio de Janeiro.
De acordo com o trabalho, muitos desses grupos, financiados com dinheiro público, reproduzem a lógica dos manicômios, o que contraria a Reforma Psiquiátrica.

Baseadas na abstinência, no isolamento social e na rotina religiosa, essas instituições são administradas em sua maioria por líderes religiosos, sobretudo evangélicos. O estudo aponta ainda que, em alguns casos, há resistência à ação de profissionais com visões alternativas.

Condutas irregulares

“O que observamos é que, apesar (das CTs) de terem os certificados exigidos por lei, muitas irregularidades permanecem”, afirma Paula Napolião, coordenadora da pesquisa. “É o caso de CTs que acolhem (usuários) fora da faixa etária permitida ou reproduzem violências de gênero, por exemplo. As mudanças que ocorreram nas CTs habilitadas para o financiamento foram escassas e superficiais. O cerne do trabalho dessas instituições segue sendo a reforma moral do indivíduo através da religião.”

A pesquisa aponta quais são e como operam as comunidades terapêuticas do Rio, habilitadas a receber recursos do poder público. Também mostra como os administradores dessas entidades respondem às exigências legais para obter certificações e concorrer a editais para receber verbas.

Por lei, para funcionar, uma comunidade terapêutica precisa de certificados do Conselho Municipal Antidrogas e da Vigilância Sanitária. Mas o estudo mostra que, em vez de fiscalizar as CTs, as instituições públicas passaram a ser parceiras dessas entidades.

Denúncias de violações de direitos
As comunidades terapêuticas existem no Brasil desde a década de 1970. Elas cresceram de forma significativa a partir da década de 1990. Não possuem vínculos com o Sistema Único de Saúde (SUS) nem com o Sistema Único de Assistência Social, sendo alvo frequente de denúncias de violações de direitos humanos.

Em 2011, desde o lançamento do programa federal “Crack, é possível vencer”, durante a presidência de Dilma Rousseff, o governo passou a financiar vagas em comunidades terapêuticas para “pessoas com transtornos decorrentes do uso de substâncias psicoativas”.

Mas foi em 2019, no governo Jair Bolsonaro (PL), que elas alcançaram o maior investimento desde sua criação. Foram R$ 560 milhões repassados via governos federal, estaduais e municipais.

No início de 2018, o governo federal financiou 2,9 mil vagas. Em dezembro de 2021 esse número saltou para 10.657. A meta para 2022 era chegar a 24.320 vagas. No município do Rio, foram destinados mais de R$ 3 milhões para o financiamento de 450 vagas em comunidades terapêuticas de 2019 a 2021.

Raio-x das CTs no Rio de Janeiro
O estudo mapeou as comunidades terapêuticas existentes no Estado do Rio. Foram identificadas 109 unidades em 16 municípios. São 38 na capital. Foram entrevistados 24 dirigentes de CTs e três funcionários de órgãos reguladores e fiscalizadores. Os servidores são ligados à Vigilância Sanitária da capital fluminense, à Subsecretaria de Prevenção à Dependência Química do Estado do Rio e à Coordenadoria de Cuidado e Prevenção às Drogas do município do Rio.

Também foram mapeados todos os editais lançados pela Prefeitura do Rio para financiamento de vagas em Comunidades Terapêuticas. Durante três meses, foram feitas visitas a nove comunidades terapêuticas na cidade do Rio. Uma é católica de filiação carismática, e as outras, evangélicas, de diferentes denominações. Quatro delas são administradas diretamente por pastores.

Práticas contrariam políticas de atenção ao usuário

Localizadas em sua maioria em locais de difícil acesso, as CTs replicam a lógica manicomial de isolamento, aponta o estudo. Nesses espaços, as substâncias psicoativas são encaradas como um grande “mal”. Deve ser exterminado por meio da abstinência, não só de drogas, como de sexo e outros prazeres “mundanos”.

O tratamento nas CTs é definido como “submissão” por uma das técnicas entrevistadas. Isso contraria a reforma psiquiátrica e a Política de Atenção Integral aos Usuários de Álcool e outras Drogas, em vigor desde 2003.

O estudo mostra que alguns responsáveis técnicos pelas CTs se opõem ao acompanhamento dos usuários por psicólogos dos Centros de Atenção Psicossocial Álcool e outras drogas (CAPSad).

O objetivo dessa ação seria evitar contato com visões alternativas à abstinência. Ao contrário das Comunidades Terapêuticas, os CAPSad fazem parte do SUS. Há anos estão em situação de sucateamento devido à falta de investimento público, diz a pesquisa.

Os centros surgiram com uma abordagem múltipla. Ela não prioriza o isolamento e a abstinência, mas a sociabilidade e a redução de danos.

Forte viés religioso
A maioria das comunidades terapêuticas é cristã. Uma pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) sobre os perfis das CTs no Brasil mostrou que 40% são de orientação pentecostal; 27% são católicas. Há ainda 7% evangélicas de missão (luterana, presbiteriana, congregacional, batista, metodista ou adventista).

“Apesar de gestores de CTs caracterizarem o trabalho feito nesses espaços como ‘desenvolvimento da espiritualidade’, o que se vê na prática é a imposição da fé cristã”, diz a pesquisadora Giulia Castro.

“O sucesso do ‘tratamento’ proposto nas CTs depende da aderência a uma rotina de participação em cerimônias religiosas. Isso é inaceitável, porque uma política pública precisa ser laica e o uso problemático de drogas precisa ser encarado como uma questão de saúde pública”.

O outro lado
Em nota divulgada na segunda-feira, 25, a Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro afirmou que “não tem nenhuma forma de contratualização com comunidades terapêuticas”. Segundo a pasta, o planejamento para cuidar de pessoas que têm sofrimento causado pelo uso de drogas é a “expansão da rede de atenção psicossocial, notadamente as equipes de Consultório na Rua, centros de atenção psicossocial álcool e outras drogas (CAPSad III) e Unidades de Acolhimento Adulto (UAA), respeitando os princípios do cuidado em liberdade e o apoio às pessoas em situação de vulnerabilidade psicossocial”.

No mesmo dia da nota, a reportagem também consultou a Secretaria Estadual de Saúde, que informou que a política para comunidades terapêuticas não está sob sua alçada, e sim sob a gestão da secretaria de Estado de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos.

Também consultados, o Ministério da Saúde e a Federação das Comunidades Terapêuticas do Estado do Rio de Janeiro não haviam se manifestado até a publicação desta reportagem.

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