‘Sem as cotas, eu não estaria fazendo uma dissertação de mestrado’, diz assistente social
‘Sem as cotas, eu não estaria fazendo uma dissertação de mestrado’, diz assistente social
Em agosto de 2012, a Lei 12.711 passou a vigorar e definiu um sistema de cotas responsável por destinar 50% das vagas de 69 universidades e 38 institutos federais a estudantes que cursaram todo o ensino médio em escolas públicas. A medida definiu também que metade dessas cadeiras deveria ser direcionada a vestibulandos com renda até 1,5 salário mínimo e estabeleceu um recorte racial e de deficiência que considera a proporção de negros, pardos, indígenas e pessoas com deficiência presentes no Estado onde estão as faculdades.
A lei implementada para diminuir a desigualdade no acesso às universidades públicas previu que 10 anos após a promulgação seria realizada no Congresso Nacional uma avaliação para discutir a eficácia da norma. Por isso o assunto volta à pauta no parlamento.
O sistema de cotas mudou a vida de pessoas como a assistente social Fabiana do Carmo, que tem 42 anos. Mulher negra, nascida e criada em São Mateus, no extremo leste da cidade de São Paulo, ela foi a primeira da família a entrar na universidade. Se formou em Serviço Social numa faculdade privada e foi beneficiada pelo recorte racial para concluir a especialização no curso de Direitos Humanos, Diversidade e Violência na Universidade Federal do ABC.
A política afirmativa também contribuiu para Fabiana entrar no mestrado em antropologia na Universidade Federal da Grande Dourados, no Mato Grosso do Sul. “A filha de um motorista e uma costureira é hoje uma mestranda. Se não fossem as cotas, não estaria fazendo o que faço agora, falando com você enquanto eu mexo na minha dissertação”, diz a pesquisadora.
Outro cenário — De acordo com o levantamento do Consórcio de Acompanhamento das Ações Afirmativas 2022, formado por pesquisadores do Centro de Estudos da Metrópole (Cebrap) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 2012, antes de a Lei das Cotas entrar em vigor, 55% dos ingressantes das instituições federais fizeram ensino médio na rede pública. Quatro anos depois, eram 64%. Desses, a porcentagem de pretos, pardos e indígenas saltou de 28% para 38% no mesmo período (2012 e 2016).
A análise cruza os dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), do Censo da Educação Superior e do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). O objetivo é apresentar um retrato efetivo do impacto das cotas. Fazer avaliações como a do Consórcio, capazes de fornecer instrumentos para fundamentar uma leitura crítica sobre a medida, é um dos itens da lei. Nunca foi cumprido.
Os pesquisadores ressaltam a complexidade do estudo, porque os dados recolhidos dos alunos que prestam o Enem não são integrados a qualquer outra base. O Censo da Educação Superior, por sua vez, não acompanha toda a trajetória do aluno na universidade e traz uma base subnotificada em relação a informações de raça, por exemplo.
A universidade ainda é branca — A pesquisa Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil, do IBGE, mostra que o número de estudantes pretos e partos ultrapassou o de brancos nas universidades públicas, pela primeira vez, em 2018. Eles representam 50,3% de estudantes.
A vivência, porém, demonstra que o modelo de inclusão ainda precisa ser aprimorado e expandido para que o país formado por 53% de não brancos reflita esse percentual também na sala de aula, conforme destaca a professora Danylla Teles, de 24 anos. Ela ingressou como cotista da Universidade Federal Rural de Pernambuco, onde licenciou-se em química. Na sala de aula, se assustou com o pequeno número de pessoas negras entre estudantes e professores. “Na minha turma de 45 alunos, cinco eram negros. Chegava a ser assustador. É quando se está dentro que se consegue perceber que a desigualdade ainda é gritante”, diz Danylla.
Desafio é manutenção — Para Wilson Almeida, professor de políticas públicas da Universidade Federal do ABC e pesquisador em políticas de inclusão, as cotas são o modelo mais efetivo de acesso ao ensino superior porque parte do critério social, antes do racial. Com isso, avalia Wilson, elas são mais abrangentes.
O professor lembra que, além do aprimoramento do formato para ampliar o ingresso, o combate à evasão segue como outro desafio. Para evitar isso, defende, é preciso promover um processo de nivelamento de quem chega por meio de propostas como cursinhos pré-vestibulares oferecidos pelas próprias universidades. “Não basta incluir, as universidades precisam dar material aos alunos e trabalhar de forma integrada para que o aluno possa ser socializado e consiga acompanhar o que é apresentado nos cursos”, diz.
Mais do que a adaptação social, alguns estudantes necessitam de políticas de financiamento. Aprovado em primeiro lugar no curso de Medicina na Universidade Federal de Juiz de Fora, em 2021, Victor Hugo precisou fazer rifa e receber doações para se manter no primeiro ano. Natural de Eugenópolis, a 409 quilômetros de Belo Horizonte, Vitor foi criado apenas pela mãe, que é costureira. Ele pensa em tentar nova rifa para o segundo ano do curso. “Não dá para depender só do auxílio da universidade, que foi cortado para R$ 400, para se manter em Juiz de Fora. Em especial num curso como Medicina, que nos demanda dedicação integral e dificulta desenvolver qualquer outra atividade”, explica.
Projetos no Congresso – No Congresso Nacional, tramitam 43 projetos para o sistema de cotas. Em levantamento exclusivo para o Expresso na Perifa, o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap) localizou 28 propostas na Câmara e outras 15 no Senado. Só na Câmara há projetos contrários, são três, dos deputados Kim Kataguiri (DEM), Professora Dayane Pimentel (União Brasil) e Doutor Jaziel (PL), representantes de partidos da base de apoio do presidente Jair Bolsonaro (PL).
Advogado do Movimento Negro Unificado (MNU), Wanderson Pinheiro rebate a ideia de ‘desigualdade reversa’ e ressalta o papel das medidas afirmativas na defesa da igualdade. “Utilizar do argumento de que a política de cotas exime o Estado brasileiro da obrigação de universalizar a educação de qualidade, beira a má-fé. Porque enquanto essa universalização não acontece, o que será dos jovens negros e negras que precisam acessar o ensino superior agora?”, questiona.
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