Favela da Maré é ‘bunker’ de medalhista olímpico
Wanderson Oliveira tem 24 anos e já esteve em 20 países levando no peito a favela da Maré; de todas essas viagens, trouxe medalhas e títulos que exibe com orgulho
4 minutos, 35 segundos de leitura
30/07/2021
Por: Rebeca Motta
Em agosto de 2020, o título de uma reportagem veiculada em um portal de notícias e em um telejornal chamou atenção: “Bunker de bandidos, Complexo da Maré tem 244 foragidos da justiça”. A palavra bunker significa esconderijo, lugar em que se dá proteção para quem foge de alguém ou de alguma coisa. A repercussão da chamada foi negativa, a manchete seria alterada, mas a narrativa original e nociva já havia sido usada. Era a da generalização: todo favelado é bandido. Se não é, acoberta um.
Reportagem de Rebeca Motta, Embarque no Direito, em São Paulo
A realidade nas favelas da Maré, porém, desafia qualquer generalização. Naquele complexo de 800 mil metros quadrados na zona norte do Rio de Janeiro vivem 140 mil pessoas em toda sua diversidade. Gente como Roberto Custódio, por exemplo, um ex-pugilista da seleção brasileira que trabalha esporte, educação e cidadania na formação de atletas de alto rendimento — em torneios e na vida — e Wanderson de Oliveira, o Shuga ou Sugar, que tem 24 anos e desde os 11 se dedica ao boxe.
Custódio é diretor da ONG Associação Luta pela Paz, que fomenta o esporte local e oferece aulas de boxe, muay thai e karatê, entre outras modalidades, e trabalha reforço escolar e inserção de jovens no mercado de trabalho. Em 12 anos de existência, a ONG captou 14 milhões de reais via leis de incentivo e injetou todo esse valor no território, ressignificando o olhar para a comunidade de Nova Holanda, na Maré. Custódio chegou ao projeto em 2001, com 14 anos e depois de perder o pai. Hoje, aos 33, promove ações de respaldo a meninos e meninas que sonham em ser atletas.
Wanderson Oliveira tem 24 anos e já esteve em 20 países levando no peito a favela da Maré; de todas essas viagens, trouxe medalhas e títulos que exibe com orgulho
Shuga foi aluno da Luta pela Paz e hoje é atleta olímpico. Já ganhou 95 medalhas — “chutando por baixo”, ele diz — e se prepara para integrar a equipe de pugilistas do Brasil nos Jogos Olímpicos de Tóquio, na categoria 63 kg.
Ele já quis ser jogador de futebol, mas o olho brilhou quando viu pela primeira vez um treino de boxe. Não teve outro jeito senão trocar, literalmente, os pés pelas mãos; as chuteiras por luvas
“O esporte mudou minha mentalidade”, diz o atleta. “A disciplina e o foco me fizeram mais maduro e responsável. O boxe se tornou o meu trabalho, meu sustento e minha esperança de mudar minha vida e da minha família.”
Para Custódio, é gratificante ver seu trabalho dando frutos. “Tenho acompanhado o Shuga na preparação no pré-olímpico, confiante de que ele vai pra Tóquio e volta com resultados positivos. Nossa vivência está muito ligada ao que o esporte nos oferece. A gente precisa ser resiliente, saber ganhar e perder, mas estamos trabalhando duro pro melhor resultado”, afirma.
Meu trabalho é acordar e entregar o melhor. Se eu não acordar cedo pra treinar, outro acorda pensando em tirar a minha vaga
Shuga, atleta olímpico
Os desafios para um atleta como Shuga são muitos, desde a busca por patrocinadores e o acesso à dieta adequada e equilibrada até a aquisição de materiais esportivos para manter a qualidade do desempenho nas lutas, mas ele tem nocauteado as dificuldades e mostrado, com sua história, que a Maré não é bunker, é berço de diversidade. “Meu trabalho é acordar e entregar o melhor. Se eu não acordar cedo pra treinar, outro acorda pensando em tirar a minha vaga”, diz Shuga. “Eu fico orgulhoso por ser um atleta periférico, porque quase ninguém acredita no seu potencial. Eu não ligo pra essa parte porque nós sabemos o suor e o esforço que foi pra chegar aonde chegamos.”
Eu fico orgulhoso por ser um atleta periférico, porque quase ninguém acredita no seu potencial. Eu não ligo pra essa parte porque nós sabemos o suor e o esforço que foi pra chegar aonde chegamos
Shuga, atleta olímpico
Mas, afinal, a Maré é bunker? É. Bunker de homens e meninos como Custódio e Wanderson. Bunker de Rebeca de Lima, 20 anos, primeira medalhista brasileira num mundial juvenil de boxe. É bunker também de mulheres como dona Orosina Vieira, que aterrou as dificuldades sob entulhos da falta de assistencialismo e políticas públicas por parte dos governos e ergueu a primeira casa na região, sobre palafitas. A Maré é bunker dessas e de tantas outras histórias que acabam escondidas por generalizações.
Alagados
Em 2006, foi inaugurado na Maré o primeiro museu em favela do mundo. O Museu da Maré registra, preserva e divulga a memória das comunidades — e parte da história do Rio de Janeiro.
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