Na pandemia, trabalhadoras enfrentam ônibus cheio e segurança precária
A realidade de quem vive na periferia quase nunca está em sintonia com as condições de isolamento. Nesse vaivém, mulheres sofrem mais
Sair de casa, do trabalho ou de algum outro refúgio só quando o ônibus se aproxima para não ficar sozinha na parada de embarque e/ou evitar aglomeração e qualquer tipo de assédio. Essa é só uma das estratégias usadas pelas mulheres para driblar os obstáculos de um vaivém que não costuma ser tranquilo.
Na pandemia (e não só, mas piorou com a redução das frotas), elas enfrentam ônibus cheio e segurança precária. A realidade de quem vive na periferia quase nunca está em sintonia com as condições de isolamento. É preciso sair para trabalhar.
No rosto, uma máscara PFF2; na bolsa, um frasco de álcool em gel — itens fundamentais no deslocamento. Uma vez dentro do ônibus, é hora de buscar o lugar menos aglomerado, perto da janela e longe do vírus e de assediadores. Esse medo se soma a efeitos da pandemia que atingem com mais força a população periférica, para quem a dificuldade de acesso à saúde e a remédios é maior e que, por vezes, vive em condições que dificultam o isolamento social, em residências pequenas e onde muitas pessoas vivem juntas.
Moradora do bairro do Capão Redondo, na zona sul de São Paulo, a trabalhadora doméstica Maria Queiroz, de 50 anos, nunca parou. Na capital paulista, sua atividade é considerada serviço essencial. “Não dá para negar que a tensão tomou conta, ainda mais lembrando da família que fica em casa compartilhando a aflição vista nos telejornais”, diz Maria. Ela continua a sair de casa todos os dias pouco antes das cinco da manhã e chega ao trabalho por volta das sete meia, na República, zona central da cidade. O percurso inclui ônibus, metrô e uma pequena caminhada.
Já a professora Íris Plin, 42 anos, mudou o meio de locomoção. Íris vive no Sacomã, também na zona sul, e sempre usou transporte público. Na pandemia, porém, passou a gastar mais ao chamar carros de aplicativo; quando pode, aproveita a carona de colegas e vizinhos. “Boa parte do meu salário eu gasto só com transporte, mas eu tenho que pensar no futuro também”, diz a professora.
Lecionando em duas escolas da rede pública, pela manhã Íris leva menos de 20 minutos para percorrer o caminho de casa até São Bernardo do Campo, na região metropolitana de São Paulo. À tarde, quando precisa atravessar a cidade para ir ao Jardim Eliana, no Grajaú, o tempo em trânsito é de uma hora e meia. Ela conta que muitas vezes chegou atrasada e que deseja conseguir ser transferida para uma escola mais próxima de casa no fim de 2021.
O volume de corridas por app aumentou 75% entre os que recebem até dois salários mínimos. Encolheu 54% entre os que têm renda maior que cinco salários mínimos
De fevereiro de 2020 a fevereiro de 2021, em São Paulo (SP). Fonte: 99
Desigualdades
Uma pesquisa recente da 99, empresa de mobilidade e conveniência, aponta que entre fevereiro de 2020 e fevereiro de 2021 o volume de corridas por aplicativo realizadas pela parcela mais pobre da sociedade aumentou 75% em São Paulo. São levadas em conta as famílias que recebem em média até dois salários mínimos. A desigualdade social chama atenção porque as corridas entre classes com mais poder aquisitivo caíram 54% na mesma cidade e em período igual. Neste caso, o público avaliado recebe mais de cinco salários mínimos — e, em boa parte, teve melhores condições para trabalhar de casa.
A pandemia de coronavírus trouxe à tona muitos debates no âmbito da mobilidade urbana. Entre os assuntos que mais mobilizam os especialistas estão a segurança no transporte público e a desigualdade socioespacial. Embora não seja possível afirmar se o contágio ocorreu no percurso, no local de trabalho ou na moradia do trabalhador, o fato de muitas pessoas de bairros com altos índices de infecção precisarem se deslocar pode ter ligação não só com o espalhamento, mas também com a concentração de casos nessas regiões — o que exige cuidados redobrados.
Até o final de 2020, na linha de frente do combate à pandemia, 3,9 milhões de profissionais da área da saúde intensificaram suas rotinas. Além deles, profissionais dedicados a funções essenciais, nos setores de serviços e abastecimento, dependem do transporte coletivo, considerado um dos principais focos de contaminação.
A crise revelou caminhos diferentes, mas que já se desenhavam antes da pandemia. Em vez de grandes inovações ou de tecnologias disruptivas, a sociedade de hoje se mostra aberta a meios acessíveis, já existentes e sanitariamente seguros. A tendência que se fortalece nessa nova dinâmica é a mobilidade mais acessível, com uma demanda flutuante, conforme o que se adaptar à necessidade. Neste momento, a preservação da saúde é prioridade para aqueles que precisam sair de casa.
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