Brasil em duas rodas
Inflação, preço dos combustíveis nas alturas e a busca por um meio de locomoção mais ágil fazem crescer a venda de veículos de duas rodas e levam cada vez mais brasileiros a trocar o carro pela moto
Clínica-geral em uma unidade de assistência médica ambulatorial (AMA) no bairro do Ipiranga, em São Paulo, Elizane dos Santos Lima, 35 anos, esteve na linha de frente no combate ao coronavírus. “Trabalhei demais, foi muito cansativo”, relembra a amazonense, que se mudou para a capital paulista para fazer residência e por aqui ficou.
Com o fim da fase mais crítica da pandemia, Eliz, como é conhecida, decidiu realizar o antigo sonho de andar de moto. “Sempre quis, mas tinha receio”, diz. Matriculou-se na motoescola e, finalmente, em abril deste ano, passou na prova e pegou sua CNH categoria A.
“Acho que a pandemia fez todo mundo refletir. Decidi que queria aproveitar mais a vida, curtir mais as coisas”, filosofa a médica. Vendeu seu carro, comprou uma moto e até se mudou para um apartamento menor para levar uma vida mais simples.
Ficou surpresa em como sua Royal Enfield Meteor, de 350 cc, está a ajudando a economizar. “Com o aumento nos preços dos carros, o IPVA e o seguro também subiram muito, neste ano. Fiquei impressionada como os gastos com a moto são menores”, revela.
Isso, sem falar no combustível. “Antes, eu gastava R$ 300 para encher o tanque do carro; agora, coloco R$ 60 na moto e rodo quase o mês inteiro”, comemora. Com a economia, já faz planos para continuar seus estudos.
Assim como milhares de brasileiros fizeram nos últimos tempos, Eliz trocou as quatro pelas duas rodas para economizar. Segundo levantamento do Detran-SP, no primeiro semestre de 2021, foram registrados 19.121 pedidos de CNH para motos. No mesmo período deste ano, foram 24.384 – um crescimento de 21,5%.
“A motocicleta torna-se ainda mais relevante em um cenário de inflação, com aumento expressivo nos preços dos combustíveis”, analisa Marco Paulo Monteiro, gerente-geral de vendas da Honda Motos.
A fabricante japonesa, líder do mercado de motos no País, conseguiu seu melhor resultado em vendas, desde 2015, nos seis primeiros meses deste ano. De janeiro a junho de 2022, o emplacamento de motos Honda teve aumento de 25%, chegando a mais de 485 mil unidades.
Vendas em alta
Aliás, o segmento de motocicletas foi o único a apresentar crescimento nas vendas entre janeiro e junho deste ano, segundo dados da Fenabrave, federação que reúne os distribuidores de veículos do País. Enquanto o emplacamento de automóveis e comerciais leves sofreu uma queda de 15,41%, no período, o de motos cresceu 23,07%.
“O efeito de substituição do carro pela moto, em função dos preços dos combustíveis, da queda na renda pela inflação e na priorização do transporte individual, além do aumento dos serviços de entrega, são alguns dos fatores que têm alavancado esse segmento”, explica Andreta Júnior, presidente da entidade.
A busca por um meio de transporte mais econômico foi o que motivou o motorista de ônibus Alex Sandro Martins da Silva, 43 anos, a comprar sua primeira moto. “Eu nunca tinha pensado em andar de moto, mas, para reduzir gastos com combustível, tive que deixar o carro na garagem”, diz ele, que percorre, todo dia, mais de 50 quilômetros entre sua casa, em São Bernardo do Campo, e Guarulhos, onde fica a empresa em que trabalha.
Deu uma volta na Honda PCX de seu afilhado, achou prática e fácil de pilotar. Decidiu tirar carta de moto e comprar uma scooter. “Gastava cerca de R$ 1.500, por mês, com gasolina, quando ia de carro; com a scooter, o gasto caiu para R$ 200”, calcula Alex. Segundo ele, sua scooter, de 150 cc, roda cerca 39 km/litro.
A economia de combustível é um dos principais fatores que explicam o sucesso das scooters no mercado brasileiro. No ano passado, por exemplo, foi a categoria que registrou maior crescimento. Foram licenciadas mais de 107 mil unidades, volume 41% superior ao registrado em 2020, segundo a Abraciclo.
“O segmento atrai diversos perfis de clientes, seja aquele que tem uma outra motocicleta, mas utiliza a scooter no dia a dia, seja aquele que deixa o carro na garagem alguns dias para ir de scooter ao trabalho seja até mesmo aquele que está entrando no mundo das duas rodas por meio das scooters”, acredita o gerente-geral de vendas da Honda.
Para ele, boa parte desses novos usuários, que, talvez, não cogitariam a motocicleta convencional como transporte, é atraído pela facilidade de pilotagem das scooters, que contam com transmissão automática do tipo CVT.
Moto como mobilidade
Embora muitos apontem o crescimento do delivery como o principal fator para o aumento na venda de motos, de acordo com informações das fabricantes associadas à Abraciclo, o principal motivo para a compra de uma motocicleta, em 2021, foi para locomoção (78%). Em segundo lugar, vem o lazer (45%), seguido pelo trabalho (9%).
Foi justamente a facilidade de se locomover que motivou a personal trainer Carolina de Freitas Souza, 35 anos, a comprar uma scooter Yamaha NMax 160. “Alguns ex-namorados tinham moto, e eu adorava andar na garupa, sentir o vento no rosto”, lembra ela.
Depois de terminar um relacionamento, decidiu tirar habilitação de moto, sair da casa dos pais e ter mais liberdade. Pilotando há mais de um ano pelas ruas de São Paulo, ela comemora. “Não tenho carro, vou pra cima e pra baixo de moto. Com a agilidade da scooter, consegui também atender mais alunos e estou ganhando mais”, revela a personal trainer.
Assim como ela, milhões de mulheres têm encontrado no guidão das motos uma maneira de garantir sua liberdade de ir e vir. Nos últimos dez anos, o público feminino cresceu 83,7%, entre as habilitações da categoria A.
Segundo pesquisa do perfil dos consumidores realizada pelas associadas da Abraciclo, a participação das mulheres no segmento de motos passou de 31% para 38%, entre 2020 e 2021.
Moto como hobby
Desde quando pilotava a scooter do seu pai, na praia, Vanessa Aldeia Brambilla, 38 anos, sempre quis ter uma moto. “O primeiro sonho era ter uma moto e o segundo era ter uma Harley”, esclarece a advogada.
Em março, ela tirou sua CNH categoria “A” e, há pouco mais de um mês, realizou seu sonho: colocou uma Harley-Davidson 883 na garagem. “Logo na primeira vez em que fui sair com ela, deixei tombar na rampa”, lamenta Vanessa. Apesar de habilitada, a advogada afirma que as aulas da motoescola não a preparam para pilotar motos, e afirma “não ter aprendido nada”.
Com a ajuda de um amigo, foi treinando, em estacionamentos, e pegando o jeito, aos poucos. “Por enquanto, passeio pelo meu bairro, em ruas que já conheço, no domingo, quando tem menos trânsito”, ensina Vanessa.
Como comprou a moto pelo hobby, pois precisa trabalhar de roupa social e sapato de salto, Vanessa já faz planos para pegar estrada. “Quero ir para Indaiatuba, no interior de São Paulo, que eu conheço e a rodovia é boa”, diz ela. Depois, quem sabe?, uma viagem mais longa para o Sul do Brasil. Claro, em duas rodas.
Formação de condutores deve ser aprimorada
Câmara temática do Conselho Nacional de Trânsito que reúne especialistas e fabricantes propõe mudanças no processo de habilitação
Mais motos nas ruas e mais pessoas tirando habilitação trazem à tona as imperfeições no processo de formação de condutores, no Brasil, o que, infelizmente, acaba se refletindo no aumento no número de acidentes com motociclistas.
No caso das motocicletas, as aulas práticas são feitas apenas em circuitos fechados, sem contato com o trânsito, e basicamente treinam o aluno a passar no exame. “Nas aulas, eu aprendi a ligar a moto. Só o básico. Você nem passa as marchas”, reclama a médica Elizane dos Santos Lima, que tirou sua habilitação em março passado.
Entretanto, o processo deve ser aprimorado nos próximos anos. Uma das câmaras temáticas do Conselho Nacional de Trânsito para discutir a formação dos condutores teve seu mandato, de dois anos, encerrado agora, em 2022. Formada por especialistas em trânsito e fabricantes, as discussões foram reunidas em uma minuta, que deve ir à consulta pública, em breve. “Existe uma Minuta de Resolução, que foi desenvolvida pela câmara anterior e que será colocada em consulta pública para avaliação, na qual a Abraciclo colocou seus pontos de vista. Os focos são o aperfeiçoamento dos exercícios e algumas padronizações na realização dos exames, em nível nacional”, revelou Paulo Takeuchi, diretor executivo da Abraciclo.
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