Pesquisador fala da tecnologia como instrumento de justiça social nas favelas
No livro ‘Tecnologia do Oprimido’, David Nemer investiga o uso que a população favelada faz da informática na busca por liberdade e no combate à opressão
Em 2021, o antropólogo, professor e pesquisador capixaba David Nemer publicou pela editora Mil Folhas o livro Tecnologia do Oprimido – Desigualdade e o Mundano Digital nas Favelas do Brasil. A base do trabalho é a experiência de moradores do Território do Bem, um complexo de favelas em Vitória, capital do Espírito Santo. Nemer investigou o uso que a população favelada faz da tecnologia – a favor de representatividade e empoderamento –, combinando as próprias pesquisas com o pensamento do educador pernambucano Paulo Freire (1921-1997). Mundialmente conhecido, Freire é patrono da educação no Brasil e pautou seus ensinamentos na justiça social.
EXPRESSO NA PERIFA – Por que abordar Paulo Freire em seus estudos?
David Nemer – Durante meu doutorado nos EUA, o ambiente de admiração me influenciou. Virei fã de seus ensinamentos. O uso vago que Paulo Freire faz da palavra “opressão” foi tanto fraqueza quanto ponto forte em Pedagogia do Oprimido [lançado em 1968, o livro mais famoso de Freire analisa a relação entre colonizador e colonizado; é referência mundial nas Ciências Sociais e fundamental para a pedagogia crítica]. Freire permitiu que pesquisadores e pessoas de origens muito distintas lessem sua própria experiência de (des)vantagem no texto, e construíssem seus próprios significados. Faço isso em meu livro e mostro como as ideias dele são atemporais e importantes para se entender as dinâmicas tecnológicas atuais e futuras.
Por que estudar o Território do Bem?
Entender a opressão em uma cidade como Vitória pode nos ajudar a entender a opressão no Brasil. Ao focar em cidades fora daquelas tradicionalmente consideradas como parte do âmbito global, como São Paulo ou Rio de Janeiro, quero chamar a atenção para o fato de que essas regiões intermediárias são onde se espera que a maior parte da população mundial viva nos próximos anos.
Território do Bem é um complexo de favelas em Vitória (ES) une há mais de 15 anos, sob uma mesma identidade, as comunidades de Jaburu, Engenharia e Floresta e dos bairros da Penha, Bonfim, Itararé, Consolação, Gurigica e São Benedito. Foi de lideranças sociais a iniciativa de desconstruir a imagem de violência associada aos territórios
Você escreve que acadêmicos e desenvolvedores não enxergam os oprimidos como agentes de tecnologia, só consumidores. Quais as consequências da estigmatização?
Tecnologias digitais são programadas por algoritmos que prescrevem como as pessoas devem usá-las. São desenvolvidas ou no Vale do Silício ou sob sua visão de mundo. A maioria é feita para quem tem educação formal e ocidental, últimos computadores e celulares, internet rápida e constante. Já para os oprimidos, como os moradores do Território do Bem, querem dizer como se comportar. De acordo com Paulo Freire, o comportamento do oprimido é definido pelo opressor, uma forma de controle que o impede de alcançar a liberdade.
Como desenvolver tecnologias para uma sociedade mais justa?
Devemos trazer o conceito da Tecnologia Mundana para a raiz dos desenvolvimentos tecnológicos. Os oprimidos deveriam ser parte do processo de tomada de decisão para tecnologias do futuro. Só assim pode ser que se promova a esperança. Seguindo a advertência de Freire, se os desenvolvedores insistem em impor suas próprias decisões em como as tecnologias devem ser prescritas e usadas, elas nunca tratarão de libertação e empoderamento e podem originar ainda mais opressão.
O acesso à internet é um direito de todo cidadão. Segundo o Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br), 14% da população (26 milhões de pessoas) nunca acessou a internet; desse total, 81% recebem até dois salários-mínimos
A Tecnologia Mundana aparece bastante em seu livro. Ela “repara” a falta de infraestrutura nas periferias e melhora a qualidade de vida dos moradores?
Tecnologia Mundana se refere a processos em que oprimidos se apropriam de tecnologias cotidianas — artefatos, operações e espaços tecnológicos — para aliviar a opressão e buscar qualidade de vida. O caso do Gustavo, na página 75, é a melhor forma de exemplificar reparo e infraestrutura. Dono de uma lan house, ele teve que montar sua própria infra para poder trazer internet para cima do morro.
No livro você descreve acontecimentos que evidenciam o abismo social de lugar geográfico, classe e raça. Um dos casos é o das ‘jornadas de junho’ de 2013. Os problemas sociais na vida offline foram transferidos para a internet?
Sim. Nos protestos, as plataformas de mídias sociais [foram usadas] tanto para empoderar quanto controlar a participação política. Por mais que a internet seja considerada aberta e democrática, sozinha ela não provê espaços de democracia, inclusão e onde todos tenham voz. Nas jornadas de junho, os moradores do Território do Bem foram aos protestos tarde, não por falta de conexão à internet, mas principalmente devido à segregação social, já que quem organizou os protestos foi a classe média estudantil e a informação circulou [nas mídias digitais] principalmente nessa bolha. Trazer mais serviços baseados na internet não conserta as mazelas sociais arraigadas em divisões sociais mais profundas. Essas divisões vão além do domínio da tecnologia. A ideia de que a tecnologia vai promover alguma grande mudança social deve ser questionada, para que possamos entender como promover uma sociedade menos opressora.
Políticas públicas como a dos telecentros, no Território do Bem, são caminhos a seguir? Como podemos combater a desigualdade nos lugares mais pobres?
Infelizmente o projeto dos telecentros em Vitória foi descontinuado sob a justificativa que hoje o mundo está ‘móvel’ e que uma rede Wi-Fi resolveria a desigualdade digital. A pandemia nos mostrou como esse pensamento é perigoso, já que ficou mais evidente que muitas pessoas não tinham sequer um tablet para acessar aulas online. É desmotivador ter que escrever um currículo ou um trabalho escolar no celular ou num tablet pequeno, porque essas tecnologias não foram feitas para isso. O mínimo que se espera é um laptop ou notebook para diminuir o impacto negativo na transição para as aulas online. Isso seria algo em que os telecentros poderiam ajudar.
Agentes de Inclusão ajudavam as pessoas a usar as tecnologias e a buscar informações; as pessoas estudavam juntas. Por mais que aglomerações não fossem possíveis na pandemia, acredito que esses espaços seriam parte da solução. Assim como lan houses, esses lugares são comunitários. Neles é possível promover aulas de programação, de preservação do meio ambiente e hackerspaces. No livro eu conto que as mães do Território precisavam trabalhar o dia inteiro e os telecentros e as lan houses funcionavam como um espaço para deixar os filhos. Diversos casos ilustram o quão importante eles são para a comunidade.
A ascensão da extrema direita no mundo se refletiu no Brasil e afetou as eleições de 2018. Circula na internet até hoje uma enxurrada de desinformações e você chegou a ser ameaçado na internet ao alertar para esse problema. A história pode se repetir em 2022?
Prevejo que em 2022 a desinformação vai circular com mais intensidade. O Brasil está numa crise sem precedentes e, para a reeleição, Bolsonaro precisará fabricar uma realidade diferente e convencer sua base, cada vez menor, a votar nele. Vemos o TSE [Tribunal Superior Eleitoral] engajado, fazendo campanhas e buscando soluções, mas as empresas de tecnologia deixam a desejar. O Telegram, por exemplo, se recusa a conversar. O Twitter não toma atitude contra contas verificadas que continuam publicando desinformação sobre vacinação e eleições. Tudo leva a crer que a história se repetirá.
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